Carl Gustav Jung foi um
psiquiatra e psicoterapeuta suíço que fundou o que chamamos de Psicologia
Analítica.
Ele nasceu em 1875 na cidade de Kesswil e morreu em junho de 1961 em Zurique, quando estava com 86 anos.
Foi uma criança bastante criativa e imaginativa. Durante sua infância teve alguns sonhos e visões bastante significativos e simbólicos, cujas imagens se assemelhavam àquelas dos mitos e religiões. Esses sonhos e visões lhe causaram profunda impressão e acabaram contribuindo para despertar em si um profundo interesse por esses assuntos.
Jung também foi bastante influenciado pela atmosfera religiosa e misteriosa do seu ambiente familiar. Seu pai era um pastor luterano e a sua mãe por vezes esteve envolvida em alguns fenômenos parapsicológicos que aconteciam dentro da sua casa. Essa realidade era algo que desafiava a compreensão de Jung. Por um lado, seu pai lhe apresentava uma fé cega, uma imagem de Deus que não fazia sentido, atrelada a um conjunto de dogmas petrificados, que não favoreciam o desenvolvimento pessoal e nem um questionamento mais profundo sobre a vida. Por outro lado, os fenômenos misteriosos, seus próprios sonhos, visões e fenômenos da natureza, lhe instigavam a buscar um sentido maior, um algo a mais que ele ainda não havia compreendido e que nem a religião de seu pai e nem a ciência da época conseguiam lhe dar respostas. Isso gerava uma profunda insatisfação no jovem Jung. Ele percebia que a ciência e a religião eram como duas instâncias que não se tocavam, que não conversavam entre si. Então, na tentativa de saciar esses dois aspectos e de fazer justiça ao ser como um todo, ele decide, por volta de 1900, já médico formado, a especializar-se em psiquiatria, a obscura especialidade médica que acabara de nascer e que ainda era um tanto incompreendida. Era a sua tentativa de promover o encontro tão almejado entre natureza e espírito. Sua tese de doutoramento foi justamente um estudo sobre as mesas mediúnicas realizadas por uma prima próxima, sob o título: "Sobre a psicologia e a patologia dos fenômenos ditos ocultos".
Jung segue seus estudos. Por volta de 1903, tem acesso ao livro de Freud sobre a Interpretação dos Sonhos e fica profundamente interessado. Eles começam a trocar correspondências, vão se aproximando e, em 1907, eles finalmente se conhecem pessoalmente. Foi um encontro bombástico e um divisor de águas na vida de Jung. Freud começou a ver nele uma espécie de príncipe herdeiro. Alguém que levaria seus estudos adiante. Jung admirava o colega, mas começou a perceber uma forte resistência em relação aos seus principais questionamentos. Jung não concordava serem as causas dos conflitos emocionais todas de origem sexual. Para ele, essa era uma visão muito reducionista da natureza humana. Freud não admitia o interesse de Jung pelos fenômenos espirituais e buscava reforçar seus pressupostos de uma forma que os transformava em dogmas ou verdades inquestionáveis. Jung se viu sem espaço e diante de uma situação que ele conhecia e já tinha vivenciado lá atrás no tempo com seu pai. A diferença é que agora estava diante do dogma científico. Em 1911, Jung inicia enfim um rompimento, que viria a ser definitivo, e mergulha de vez na construção de sua própria teoria.
Jung não tinha nenhuma espécie de preconceito científico. Para ele, tudo era fonte de pesquisa e análise, inclusive suas próprias experiências. Ele começa a estudar todas as áreas de manifestações humanas: história, filosofia, culturas das mais diversas, arte, mitologias, alquimia, métodos místicos, ciências sagradas, religiões - das mais antigas às mais recentes e estruturadas - além dos sonhos, visões e fantasias próprias e de seus pacientes. Nesse processo, começa a perceber algo em comum em todo aquele material, começa a perceber um certo padrão de manifestação. Esse padrão comum que ele foi pesquisando e descobrindo é o que ele passou a chamar de Inconsciente Coletivo, o aspecto mais original da sua teoria e um conceito determinante para o entendimento de todo o desenvolvimento da personalidade na visão da Psicologia Analítica.
O Inconsciente Coletivo é
a camada mais profunda da psique. Ele é uma base psíquica herdada e universal,
na qual está contida a memória do nosso passado enquanto espécie, nossa
história como seres humanos sobre a Terra e toda a sabedoria e experiência
acumulada ao longo de incontáveis séculos de evolução, desde as nossas origens
pré humanas e animais. São memórias de potenciais, estruturas e caminhos
herdados que ficaram gravados na estrutura cerebral da espécie, como resultado
das experiências cumulativas da humanidade. Nós herdamos a possibilidade de
reviver essas mesmas experiências, e elas funcionam como predisposições vivas
que condicionam nosso modo pensar, sentir, agir e perceber o mundo.
Por exemplo: mesmo que nunca tenhamos visto uma cobra, todos nós possuímos uma predisposição a ter medo e a reagir de uma forma típica e instintiva diante da presença desse animal. Isso acontece porque ao longo da história da humanidade inúmeros ancestrais já estiveram diante dessa mesma experiência e foram suas vítimas fatais. A memória dessa experiência repetida ficou guardada no inconsciente coletivo como uma prontidão viva, que pode então vir a ser acionada, dependendo da nossa experiência individual.
Essas prontidões vivas ou predisposições que formam modos de pensar, sentir e agir de uma maneira tipicamente humana é o que o Jung chamou de Arquétipo. Eles são como que órgãos psíquicos inatos transmitidos de forma hereditária que contribuem para estruturar e organizar a personalidade, da mesma forma que os instintos. Há tantos arquétipos quanto situações típicas na vida. Como no exemplo da cobra, quando algo ocorre na vida que corresponde a um arquétipo, este logo é ativado e se impõe sobre a situação. De forma compulsiva, passamos a agir instintivamente, seguindo um determinado script ou roteiro que é igual em todas as culturas e em todos os lugares, contra toda a nossa razão e nossa vontade. Essa experiência individual do arquétipo vai ajudar a fornecer uma imagem interna para ele. Aquilo que antes só existia enquanto potencial, ou como uma forma vazia latente e profundamente inconsciente, passa a adquirir substância e uma face muito específica a partir da experiência vivida.
Esse processo de personalização dos arquétipos vai criando o que chamamos de Inconsciente Pessoal. Um cenário interior composto por inúmeras imagens arquetípicas, em torno das quais estão agregadas emoções, sensações, percepções, pensamentos e reações que foram vivenciadas por essas experiências arquetípicas.
Esses núcleos carregados de emoção e significado - em cujo centro há um arquétipo - é o que o Jung chamou de Complexo. O arquétipo, portanto, aparece e se consolida na psique individual através do complexo, e eles vão formando os blocos estruturais de toda a organização psíquica. Os complexos são uma rede de associações em torno de um tema, que vão criar padrões de interpretação e de resposta a esse mesmo tema todas as vezes em que ele aparecer na vida individual.
Por exemplo: todos os seres humanos sempre tiveram mães. Portanto, todos os bebês nascem com uma predisposição a perceber e reagir à uma mãe. Essa é uma experiência arquetípica. No momento do nascimento, esse arquétipo é imediatamente ativado, e todas as emoções, sensações, sentimentos, ideias e experiências que essa criança experimenta com a sua mãe e outras figuras maternas importantes vai formando a sua imagem interna de mãe e um determinado padrão de resposta à ela: esse é o seu Complexo Materno. Em outros momentos, quando esse indivíduo estiver diante de qualquer situação da vida onde a ideia de mãe estiver presente, esse complexo será ativado com toda a sua rede de associações correspondentes, fazendo o indivíduo agir de acordo com o roteiro do complexo em questão.
Os complexos não são nem negativos e nem positivos, mas os seus efeitos podem ser. Vai depender do papel que eles exercem na nossa forma de interpretar as situações da vida, nos nossos padrões de comportamento e reações emocionais.
Os principais complexos
definidos por Jung são:
- O Ego,
- A Sombra,
- A Persona,
- A Anima ou Animus.
O Ego
O Ego é o primeiro e mais importante complexo. Ele ocupa o lugar central da consciência. É o responsável pelo nosso senso de identidade, individualidade e existência. É formado num primeiro momento por uma percepção geral do nosso corpo e, a seguir, pelos registros da nossa memória. O Ego é o centro no qual a nossa vontade se manifesta. Comporta nossas preferências pessoais, nossos desejos e aspirações, nossas aptidões, nossa capacidade reflexiva, nosso tipo psicológico específico: se somos introvertidos ou extrovertidos, se somos mais inclinados ao pensamento ou a sentimento, à sensação ou à intuição. O Ego tem um papel muito importante na organização da personalidade, pois cabe a ele estruturar as ligações necessárias entre todos os componentes da psique, tanto conscientes quanto inconscientes e fazer a mediação dessa realidade com as demandas do mundo exterior.
O complexo do Ego começa
a se desenvolver muito cedo na vida, quando o relacionamento principal ainda é
o de mãe e filho. Depois ele vai sendo influenciado pelos outros integrantes da
família, expandindo-se até o contexto cultural mais amplo. A construção da
nossa identidade, portanto, vai sendo profundamente influenciada pelas
preferências e aversões das pessoas às quais dependemos emocionalmente quando
somos crianças.
A Sombra
No processo de formação
do Ego, algumas atitudes, tendências, características e impulsos serão aceitos
pelas pessoas as quais dependemos emocionalmente e outros serão rejeitados.
Aquilo que é rejeitado no processo educativo não desaparece simplesmente, mas
vai se aglomerando logo abaixo da consciência, em uma região mais superficial
do inconsciente pessoal, formando um complexo, que é uma espécie de alter ego ou anti-eu. Esse alter ego ou anti-eu é o que o Jung
chamou de Sombra.
A Sombra, portanto, são todos os comportamentos, traços de
personalidade e crenças que suprimimos ou reprimimos por terem sido
considerados negativos para serem aceitos. Como fomos condicionados,
e também por ser algo desagradável de admitir, costumamos negar esses aspectos.
Eles passam então a ser projetados, ou seja, nós enxergamos esses conteúdos do
lado de fora de nós mesmos, nas outras pessoas. São aqueles que nos irritam
profundamente, pois no íntimo, representam o que não podemos ou não conseguimos
admitir em nós mesmos.
A Persona
A Persona é o complexo que tem por função facilitar a nossa
relação com o mundo exterior. Ela é uma
interface, uma ponte natural entre aquilo que acontece no interior de nós
mesmos e aquilo que vamos manifestar do lado de fora. Vai sendo construída de
forma inconsciente durante o processo educativo e constitui uma espécie de
compromisso com o viver em sociedade.
A Persona é como se fosse uma máscara ou fachada
que exibimos para facilitar nossa comunicação com o mundo externo e assim
sermos aceitos por determinados grupos do qual fazemos parte, pela sociedade em
que vivemos e também para que possamos cumprir os papéis a nós exigidos.
Dependemos dela nos nossos relacionamentos, no trabalho, na roda de amigos e na
convivência em geral.
De forma positiva, a Persona auxilia na convivência
em sociedade, pois transmite uma sensação de segurança, já que cada um age
dentro daquilo que é esperado. Ela também serve como proteção em relação às
nossas características, desejos, pensamentos ou sentimentos internos que não
serão bem vistos pelos outros e que, portanto, precisamos esconder.
O aspecto negativo da Persona surge quando nos identificamos completamente com ela e acabamos perdendo contato com a nossa realidade interior. Nos tornamos pessoas rígidas, difíceis de conviver, vivendo de forma automática e sem uma reflexão mais profunda sobre a existência, na medida que ela é o que há de mais superficial e aparente em nós.
A Anima e o Animus
A anima constitui o lado
feminino no interior do homem e o Animus constitui o lado masculino no interior
da mulher. Todos nós possuímos aspectos do sexo oposto, não só biologicamente,
através dos hormônios e genes, mas também psicologicamente como uma imagem, em
torno da qual sentimentos e atitudes são associados.
O Ego, na sua evolução
psicológica habitual, identifica-se com a qualidade feminina ou masculina do
corpo e, assim, a outra parte transforma-se em uma função inconsciente, ou
melhor, em um complexo. Esse complexo compõe-se de todas as nossas experiências
com o sexo oposto, nossas impressões mais básicas sobre masculino ou feminino,
a forma de se relacionar com eles, suas qualidades culturalmente definidas, os
condicionamentos ditados pelos cromossomos e glândulas sexuais e as impressões
arquetípicas tradicionalmente associadas ao feminino e ao masculino.
Normalmente experimentamos a anima ou o animus através da projeção em uma pessoa do sexo oposto. Nós os vemos fora de nós, como se fizessem parte da outra pessoa sem ter qualquer relação conosco.
Esse fato tem
implicações importantes para os relacionamentos, pois tendemos a projetar no
sexo oposto nossas próprias qualidades inconscientes. A pessoa que recebe essa
projeção vai então nos atrair ou nos causar repulsa, da mesma forma que um imã.
Quando duas pessoas projetam ao mesmo tempo suas imagens interiores temos o
estado de apaixonamento. O outro passa a ser o representante desta imagem de
alma que carregamos internamente. Essa situação, no entanto, é sempre limitada
no tempo, pois nenhuma pessoa consegue corresponder eternamente às expectativas
inconscientes de uma outra pessoa.
Esses são, portanto, os complexos principais.
O Ego e a Sombra são estruturas de identidade (o Eu e o
Anti-eu); a Persona, a Anima ou o Animus são estruturas de relação (o Eu na
relação com o mundo externo e o Eu na relação com o mundo interno).
A partir deles, nós podemos dividir a Psique em três instâncias, de acordo com Jung:
- A Consciência Individual, cujo centro é o complexo do Ego;
- O Inconsciente Individual, onde está a nossa Sombra e outros complexos emocionais;
- E o Inconsciente Coletivo, o reino dos arquétipos.
O Self e o Processo de Individuação
O Self é a totalidade da psique, consciente e inconsciente juntos. Mas, ao mesmo tempo, ele é também seu centro e origem, na medida em que de suas tendências formativas e organizadoras surgem todas as outras estruturas psíquicas. Tudo surge do Self e se organiza em torno dele. É o principal arquétipo do Inconsciente Coletivo e, portanto, a força mais poderosa e influente da psique. O Self exerce uma influência orientadora, seletiva, organizadora e unificadora sobre o nosso comportamento desde o início da vida. Ele atrai para si e harmoniza os arquétipos e suas atuações, formando os complexos e contribui para unir a personalidade, trazendo para a consciência um senso de unidade e firmeza. Do ponto de vista do Ego, o Self é uma realidade superior e transcendente. É comumente sentido como o símbolo projetado da imagem divina, ou seja, ele é a imagem de Deus em nós, o arquétipo da totalidade.
O objetivo do Self é realizar a si mesmo. Realizar o que Jung chamou de Processo de Individuação: o desenvolvimento do potencial para o qual nascemos, especificamente naquilo que possuímos de mais singular, íntimo, único e incomparável. É o processo de desenvolvimento da personalidade como um todo, o que implica na diferenciação crescente em relação à psicologia do coletivo e na integração das mais variadas partes que compõem a nossa psique, para que elas possam se expressar de forma cada vez mais sutil e complexa. Esse objetivo é inato, se estende ao longo de uma vida inteira, só terminando com a morte. Não é um processo fácil, simples e nem tampouco linear. É doloroso e difícil, porque pressupõe, por parte do Ego, uma absoluta fidelidade ao processo e também uma capacidade de suporta-lo.
Na perspectiva da Psicologia Junguiana, portanto, a doença não é vista como algo negativo que deve ser eliminado a qualquer custo, mas como uma tentativa da natureza de restaurar o equilíbrio perdido e restabelecer a saúde. Nesse sentido, os sintomas são porta-vozes, vêm à serviço da nossa cura e são uma ótima oportunidade para nos conhecermos melhor.
Enfim, Jung...
Jung foi um dos
precursores da visão sistêmica ou holística de saúde, superando o paradigma
cartesiano da ciência de sua época. Sendo assim, ele foi um homem muito à
frente de seu tempo. Tinha um atitude humanista diante de seus pacientes e
entendia que eles precisavam ser vistos como um todo, não apenas como um
conjunto de sintomas. Em sua ênfase sobre o Processo de Individuação, o
conceito central de sua psicologia, Jung assinala de forma clara a profunda importância
e valor que dava ao indivíduo, à vida humana e à realidade interior.
Como ele disse em uma de
suas mais famosas frases:
“Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta.”
Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga – CRP 07/13831
Psicoterapeuta Online
(*Texto originalmente elaborado para a Roda de Conversa da disciplina de Teorias da Personalidade da UFMA - Universidade Federal do Maranhão, à convite do prof. Fabio José Cardias Gomes)