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O Voo de Ícaro |
“Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a
nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de
fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe,
se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real,
que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que
escolher? O peso ou a leveza?”
“A insustentável leveza do ser” do escritor tcheco Milan
Kundera é um romance clássico da literatura mundial. Seu texto é marcado pela presença de
conteúdos essencialmente filosóficos e psicológicos. Para quem não conhece o livro ou ainda
não teve a oportunidade de ver o filme, a história acontece em Praga e em
Zurique, em 1968 e década
seguinte, e narra os
amores e os desamores de
quatro pessoas: Tomás, Teresa, Sabina e Franz. Tem como pano de fundo a invasão
russa à Tchecoslováquia e o clima de tensão política que pairava
em Praga naqueles dias.
Kundera nos traz uma reflexão importante acerca da leveza
e do peso, aspectos ambivalentes da existência de todos nós. Para ele, a leveza
caracteriza aquela vida solta, despreocupada e sem os vínculos afetivos,
territoriais, culturais e sociais comuns. Leveza significa viver uma vida
baseada na liberdade descompromissada ou não engajada, cujo único objetivo é a
simples fruição da mesma, sem uma meta ou significado mais profundo. O peso, ao
contrário, está ligado aos vínculos emocionais, ao engajamento, ao
comprometimento que, como uma âncora, fincam nossa vida na terra e constroem
razões e significados para o existir.
A sociedade moderna atribui um grande valor e importância
à leveza, à liberdade, no sentido do desprendimento e da realização dos desejos
e vontades do nosso próprio ego. Liberdade passou a ser sinônimo de felicidade.
Podemos tomar como exemplo a chamada Geração ‘Y’, jovens na faixa dos 30 aos 35
anos, que estão cada vez mais optando por investirem seu tempo e energia em experiências, viagens e
aventuras, do que na criação de vínculos emocionais mais profundos, como
casamento e filhos. O motivo é que os vínculos nos
trazem responsabilidades, fardos e preocupações. Os relacionamentos nos tornam
vulneráveis. E ao nos abrirmos a eles, ao nos abrirmos ao outro, passamos a nos
importar e, consequentemente, a nos responsabilizar.
Porém,
quando levamos nossa vida de forma excessivamente unilateral, privilegiando
apenas o conforto do nosso ego em detrimento de certos aspectos e estágios inevitáveis da
vida e dos relacionamentos, acabamos por gerar um desequilíbrio, que será de
alguma forma compensado pela nossa psique inconsciente. Como diz o próprio
Jung: “A todo bem corresponde um mal, e não pode entrar no mundo absolutamente
nada de bom sem produzir o mal correspondente”, pois “a totalidade, a plenitude
da vida exige um equilíbrio entre o sofrimento e a alegria”.
Um mito
interessante que nos fala desse processo é o Mito de Ícaro, personagem da
mitologia grega que teve suas asas de cera derretidas pelo Sol por ter voado
alto demais. Certa vez, Ícaro e seu pai Dédalo foram feitos prisioneiros em um
labirinto. Como Dédalo era uma pessoa bastante criativa fabricou asas
artificiais para que eles pudessem escapar dali. Antes da fuga, Ícaro foi
aconselhado por seu pai a segui-lo de perto e não se afastar. O filho não
escuta os seus conselhos e, durante a fuga, tomado pelo ímpeto de voar,
eleva-se em direção ao Sol, que derrete suas asas de cera, levando-o a precipitar-se
violentamente contra o mar.
O mito
mostra os riscos de se tomar atitudes unilaterais que contrariem a totalidade e
o equilíbrio da vida representado pela figura do sábio pai. Ícaro representa
aquele indivíduo que sucumbiu à teia de ilusões e interesses do seu próprio
ego, deixando de considerar determinados aspectos da realidade. E como a sua
liberdade absoluta era uma ilusão, seu voo alto se converteu em queda, trazendo
tristeza e dor.
A ausência de responsabilidades e de fardos nos tornam
leves como ar, nos permitem voar e se distanciar daquilo que nos faz humanos e
terrenos. Mas, ao mesmo tempo, destitui a vida de todo o seu significado mais
profundo, pois o sentido da vida não é simplesmente existir, mas se relacionar,
se envolver, se desenvolver, se aprimorar, alcançar e conquistar. Uma vida sem
significado é uma vida vazia e estéril. E é nesse sentido que a leveza se torna
insustentável.
O ego não nos basta. Todos nós precisamos de algo que nos transcenda e
justifique a nossa existência. Todos nós precisamos saber o propósito
para o qual nos dirigimos, o intento para o qual somos guiados ou atraídos.
Conhecer este significado é fundamental para o nosso equilíbrio psicológico.
A leveza nos permite sonhar, imaginar e criar novas
possibilidades para o existir. Mas nada disso fará ou terá sentido se não for
para ser trazido de volta para a terra, ajustadas as suas dimensões reais e
aplicadas a nossa vida prática. A vida brota do chão e acontece no momento
presente. Ignorar este fato é viver de forma alienada, o que levará o nosso ego
a se sujeitar a diversas situações que não nos deixarão dúvidas de que a vida está
sendo indevidamente conduzida. Nós só temos importância por causa do essencial que
encarnamos, e se não o encarnamos, a vida é desperdiçada, afirmou Jung.
Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS
Referências: JUNG, Carl Gustav. A Prática da Psicoterapia. Obras Completas. Vol. 16/1. Petrópolis: Vozes, 2011. JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. Yabuschita, Fábio Massao. The Dark Side of The Moon, a obra-prima do Pink Floyd segundo a Psicologia Junguiana. Editora Dracaena.
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS
Referências: JUNG, Carl Gustav. A Prática da Psicoterapia. Obras Completas. Vol. 16/1. Petrópolis: Vozes, 2011. JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. Yabuschita, Fábio Massao. The Dark Side of The Moon, a obra-prima do Pink Floyd segundo a Psicologia Junguiana. Editora Dracaena.
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