domingo, 22 de maio de 2016

A Insustentável Leveza do Ser


O Voo de Ícaro


“Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?”



“A insustentável leveza do ser” do escritor tcheco Milan Kundera é um romance clássico da literatura mundial. Seu texto é marcado pela presença de conteúdos essencialmente filosóficos e psicológicos. Para quem não conhece o livro ou ainda não teve a oportunidade de ver o filme, a história acontece em Praga e em Zurique, em 1968 e década seguinte, e narra os amores e os desamores de quatro pessoas: Tomás, Teresa, Sabina e Franz. Tem como pano de fundo a invasão russa à Tchecoslováquia e o clima de tensão política que pairava em Praga naqueles dias.

Kundera nos traz uma reflexão importante acerca da leveza e do peso, aspectos ambivalentes da existência de todos nós. Para ele, a leveza caracteriza aquela vida solta, despreocupada e sem os vínculos afetivos, territoriais, culturais e sociais comuns. Leveza significa viver uma vida baseada na liberdade descompromissada ou não engajada, cujo único objetivo é a simples fruição da mesma, sem uma meta ou significado mais profundo. O peso, ao contrário, está ligado aos vínculos emocionais, ao engajamento, ao comprometimento que, como uma âncora, fincam nossa vida na terra e constroem razões e significados para o existir.

A sociedade moderna atribui um grande valor e importância à leveza, à liberdade, no sentido do desprendimento e da realização dos desejos e vontades do nosso próprio ego. Liberdade passou a ser sinônimo de felicidade. Podemos tomar como exemplo a chamada Geração ‘Y’, jovens na faixa dos 30 aos 35 anos, que estão cada vez mais optando por investirem seu tempo e energia em experiências, viagens e aventuras, do que na criação de vínculos emocionais mais profundos, como casamento e filhos. O motivo é que os vínculos nos trazem responsabilidades, fardos e preocupações. Os relacionamentos nos tornam vulneráveis. E ao nos abrirmos a eles, ao nos abrirmos ao outro, passamos a nos importar e, consequentemente, a nos responsabilizar.

Porém, quando levamos nossa vida de forma excessivamente unilateral, privilegiando apenas o conforto do nosso ego em detrimento de certos aspectos e estágios inevitáveis da vida e dos relacionamentos, acabamos por gerar um desequilíbrio, que será de alguma forma compensado pela nossa psique inconsciente. Como diz o próprio Jung: “A todo bem corresponde um mal, e não pode entrar no mundo absolutamente nada de bom sem produzir o mal correspondente”, pois “a totalidade, a plenitude da vida exige um equilíbrio entre o sofrimento e a alegria”.

Um mito interessante que nos fala desse processo é o Mito de Ícaro, personagem da mitologia grega que teve suas asas de cera derretidas pelo Sol por ter voado alto demais. Certa vez, Ícaro e seu pai Dédalo foram feitos prisioneiros em um labirinto. Como Dédalo era uma pessoa bastante criativa fabricou asas artificiais para que eles pudessem escapar dali. Antes da fuga, Ícaro foi aconselhado por seu pai a segui-lo de perto e não se afastar. O filho não escuta os seus conselhos e, durante a fuga, tomado pelo ímpeto de voar, eleva-se em direção ao Sol, que derrete suas asas de cera, levando-o a precipitar-se violentamente contra o mar.

O mito mostra os riscos de se tomar atitudes unilaterais que contrariem a totalidade e o equilíbrio da vida representado pela figura do sábio pai. Ícaro representa aquele indivíduo que sucumbiu à teia de ilusões e interesses do seu próprio ego, deixando de considerar determinados aspectos da realidade. E como a sua liberdade absoluta era uma ilusão, seu voo alto se converteu em queda, trazendo tristeza e dor.

A ausência de responsabilidades e de fardos nos tornam leves como ar, nos permitem voar e se distanciar daquilo que nos faz humanos e terrenos. Mas, ao mesmo tempo, destitui a vida de todo o seu significado mais profundo, pois o sentido da vida não é simplesmente existir, mas se relacionar, se envolver, se desenvolver, se aprimorar, alcançar e conquistar. Uma vida sem significado é uma vida vazia e estéril. E é nesse sentido que a leveza se torna insustentável.

O ego não nos basta. Todos nós precisamos de algo que nos transcenda e justifique a nossa existência.  Todos nós precisamos saber o propósito para o qual nos dirigimos, o intento para o qual somos guiados ou atraídos. Conhecer este significado é fundamental para o nosso equilíbrio psicológico.

A leveza nos permite sonhar, imaginar e criar novas possibilidades para o existir. Mas nada disso fará ou terá sentido se não for para ser trazido de volta para a terra, ajustadas as suas dimensões reais e aplicadas a nossa vida prática. A vida brota do chão e acontece no momento presente. Ignorar este fato é viver de forma alienada, o que levará o nosso ego a se sujeitar a diversas situações que não nos deixarão dúvidas de que a vida está sendo indevidamente conduzida. Nós só temos importância por causa do essencial que encarnamos, e se não o encarnamos, a vida é desperdiçada, afirmou Jung.



Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS


Referências: JUNG, Carl Gustav. A Prática da Psicoterapia. Obras Completas. Vol. 16/1. Petrópolis: Vozes, 2011. JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.  Yabuschita, Fábio Massao. The Dark Side of The Moon, a obra-prima do Pink Floyd segundo a Psicologia Junguiana. Editora Dracaena.


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