Saturno devorando o seu filho - Peter Paul Rubens |
Todos nós nascemos livres, carregando conosco o germe da
totalidade e da saúde. Porém, como dependemos dos nossos pais e da nossa
cultura para a satisfação de nossas necessidades mais básicas, somos logo
separados desse ser natural. Somos socializados para servir e manter o
coletivo, as estruturas familiares e as instituições sociais que possuem vida
própria, porém exigem o nosso constante sacrifício para serem sustentadas. Como
conseqüência, surgem inúmeras patologias pessoais e sociais, fruto das almas
individuais que foram deformadas por esses papeis pré-estabelecidos.
Os homens, assim como as mulheres, crescem sob a pesada
sombra de ideologias, valores, papéis e expectativas que permeiam a construção
da sua identidade e que exercem, do mesmo modo, um peso opressivo sobre a sua
alma. A experiência dessa sombra é saturnina e sempre esteve presente,
porém hoje em dia alguns homens estão começando a questionar a necessidade de
viver dessa forma.
Saturno,
o deus grego-romano, era filho do princípio masculino Urano (o Céu), e do
princípio feminino Gaia (a Terra). Eles se uniram e produziram a primeira raça:
os Titãs, dos quais Cronos (ou Saturno) era o mais novo. Contudo, Urano tinha
verdadeiro horror dos seus filhos, pois considerava todos eles feios e
imperfeitos. Por esse motivo, encerrou-os nas profundezas das trevas para que
não ofendessem seus olhos. Gaia, enfurecida, tramou uma vingança contra o
marido: fabricou uma foice e induziu o astuto Cronos a atacar o pai. Certa
noite, Cronos golpeou e cortou o falo de Urano, atirando-os ao mar. Em seguida,
libertou os irmãos, expulsou e substituiu o pai. No entanto, acabou tornando-se
um tirano de igual magnitude. Sempre que ele e sua esposa Réia tinham filhos,
ele os devorava a fim de preservar o seu reinado. A única criança que conseguiu
evitar essa sina foi Zeus, que liderou uma revolta contra Cronos, dando início
a uma guerra que durou dez anos. Zeus conseguiu destronar o pai, instaurando o
reino dos deuses olímpicos, mas também ele acabou por se tornar um prisioneiro
do mesmo complexo de poder, tornando-se também um dominador.
O mito de Cronos-Saturno é uma história sobre poder,
ciúme, insegurança e violência contra o princípio do relacionamento. Como Jung
comentou certa vez, na presença do poder, o amor nunca está presente, pois
junto com a sua aquisição, aparece também a sua corrupção. O poder, sem o
sentimento, sem o princípio que induz ao relacionamento, é corrompido pelo medo
e pela ambição, e acaba sendo direcionado para fins violentos.
A maioria dos homens cresceu sob a sombra desse legado
saturnino. Herdaram uma realidade na qual o principal valor do homem é defender
o seu espaço e sustentar a sua família. Ou como disse o analista James Hollis,
“minha sina, além de ser um animal econômico, era crescer e tornar-me um
soldado..”. No entanto, esses são apenas papéis, ou seja, não representam o
homem inteiro, não sustentam, confirmam ou refletem as necessidades da alma dos
homens. A maioria, se perguntados, conseguirão se definir apenas através desses
papéis, mas muito poucos serão capazes de sequer definir o que significa ser de
fato um homem.
Contrariando talvez suas intenções conscientes, os homens
seguem desempenhando esses papéis marcadamente históricos, participando dia a
dia de uma troca competitiva e humilhante. Quando se encontram, a sombra do
complexo de poder inevitavelmente vem à tona, e os homens passam, ainda que de
forma inconsciente, a avaliarem-se uns aos outros e a competirem entre si. Atualizam
constantemente o drama arquetípico do poder, com todos os temores e defesas
dele resultantes.
E isso nos conduz a um ponto importante no que se refere
ao universo psíquico masculino: a vida dos homens é basicamente governada pelo
medo. Dificilmente eles serão capazes de admitir isso, pois reconhecer o lugar
do medo em suas vidas significa perder o controle sobre as coisas, correr o
risco de sentirem-se pouco masculinos e de serem humilhados pelos outros.
No entanto, seus medos estão presentes e aparecem através
de duas formas fundamentais: o medo de não estar à altura do que se espera
deles e o medo da provação física ou psicológica. O primeiro é o aspecto mais
visível da sombra saturnina: a competição, o duelo entre ganhadores e
perdedores e a produtividade como medida da masculinidade. O segundo se
expressa através da dúvida que sentem em relação à sua habilidade de defenderem
a si próprios e à sua família.
A maioria dos homens há de concordar que sente mais medo
do sofrimento, do fracasso e da impotência do que a própria morte. E,
governados como são pelo medo e incapazes de admitirem isso até para si
próprios, procuram compensar seu sentimento de inferioridade através de
“patéticos substitutos do poder genuíno” como disse Hollis: um carro possante,
uma casa enorme, almoços de interesses, um cargo ou posição importante ou o
poder sobre os outros. Sob toda essa exibição de poder, está o medo e, como bem
sabemos, um animal com medo torna-se perigoso e não confiável.
Sendo assim, o complexo de poder - a sombra e o legado
saturnino - é a força central que governa a vida dos homens. Ele os impulsiona
e os fere ao mesmo tempo, e conseqüentemente uns aos outros. O preço de tudo
isso é facilmente detectado no sofrimento individual de cada um e na patologia
da nossa sociedade: os homens morrem mais cedo do que as mulheres, têm mais
probabilidade de abusar de substâncias, de cometer suicídio e de irem para a
prisão.
Alguns homens sempre tiveram a consciência dessa sombra,
outros estão despertando agora, enquanto que a maior parte ainda sente que não
há alternativas e que essa é a única possibilidade que existe. No entanto, o
exemplo das mulheres, lutando para se libertar dos grilhões históricos que as
aprisionam, confere coragem e torna necessário que os homens realizem o mesmo.
Como observou o teólogo dinamarquês Sörem A. Kierkegaard, em meados do século
passado, não conseguiremos salvar nossa era, se não assumirmos com convicção de
que ela está perecendo. O primeiro requisito é que nos tornemos conscientes de
nossas feridas, para que possamos parar de ferir os outros a nossa volta. Esse,
portanto, não é apenas um trabalho individual, mas, acima de tudo, um trabalho
social.
A sombra de Saturno descansa pesadamente sobre a cabeça de
todos os homens. Enquanto continuarem culpando uns aos outros, nada mudará. No
entanto, não é mais possível ficar esperando por mudanças do lado de fora, pois
elas só começam no interior de cada um. Os homens geralmente sentem mais
dificuldade em interiorizar suas experiências, em admitir para si as suas
vulnerabilidades. Por isso, a tarefa que se impõe a eles é bem difícil, porém
profundamente necessária. Do contrário, continuarão a ferir os que estão a sua
volta, e o mundo jamais será um lugar seguro e saudável.
Por Melissa Samrsla Brendler
Psicologa - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS
Psicologa - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS
Fonte: HOLLIS, James. Sob a Sombra de Saturno,
a ferida e a cura dos homens. São Paulo: Paulus, 1997.
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