domingo, 2 de abril de 2017

SOB A SOMBRA DE SATURNO: a ferida e a cura dos homens



Saturno devorando o seu filho - Peter Paul Rubens



Todos nós nascemos livres, carregando conosco o germe da totalidade e da saúde. Porém, como dependemos dos nossos pais e da nossa cultura para a satisfação de nossas necessidades mais básicas, somos logo separados desse ser natural. Somos socializados para servir e manter o coletivo, as estruturas familiares e as instituições sociais que possuem vida própria, porém exigem o nosso constante sacrifício para serem sustentadas. Como conseqüência, surgem inúmeras patologias pessoais e sociais, fruto das almas individuais que foram deformadas por esses papeis pré-estabelecidos.

Os homens, assim como as mulheres, crescem sob a pesada sombra de ideologias, valores, papéis e expectativas que permeiam a construção da sua identidade e que exercem, do mesmo modo, um peso opressivo sobre a sua alma. A experiência dessa sombra é saturnina e sempre esteve presente, porém hoje em dia alguns homens estão começando a questionar a necessidade de viver dessa forma.

Saturno, o deus grego-romano, era filho do princípio masculino Urano (o Céu), e do princípio feminino Gaia (a Terra). Eles se uniram e produziram a primeira raça: os Titãs, dos quais Cronos (ou Saturno) era o mais novo. Contudo, Urano tinha verdadeiro horror dos seus filhos, pois considerava todos eles feios e imperfeitos. Por esse motivo, encerrou-os nas profundezas das trevas para que não ofendessem seus olhos. Gaia, enfurecida, tramou uma vingança contra o marido: fabricou uma foice e induziu o astuto Cronos a atacar o pai. Certa noite, Cronos golpeou e cortou o falo de Urano, atirando-os ao mar. Em seguida, libertou os irmãos, expulsou e substituiu o pai. No entanto, acabou tornando-se um tirano de igual magnitude. Sempre que ele e sua esposa Réia tinham filhos, ele os devorava a fim de preservar o seu reinado. A única criança que conseguiu evitar essa sina foi Zeus, que liderou uma revolta contra Cronos, dando início a uma guerra que durou dez anos. Zeus conseguiu destronar o pai, instaurando o reino dos deuses olímpicos, mas também ele acabou por se tornar um prisioneiro do mesmo complexo de poder, tornando-se também um dominador.

O mito de Cronos-Saturno é uma história sobre poder, ciúme, insegurança e violência contra o princípio do relacionamento. Como Jung comentou certa vez, na presença do poder, o amor nunca está presente, pois junto com a sua aquisição, aparece também a sua corrupção. O poder, sem o sentimento, sem o princípio que induz ao relacionamento, é corrompido pelo medo e pela ambição, e acaba sendo direcionado para fins violentos.

A maioria dos homens cresceu sob a sombra desse legado saturnino. Herdaram uma realidade na qual o principal valor do homem é defender o seu espaço e sustentar a sua família. Ou como disse o analista James Hollis, “minha sina, além de ser um animal econômico, era crescer e tornar-me um soldado..”. No entanto, esses são apenas papéis, ou seja, não representam o homem inteiro, não sustentam, confirmam ou refletem as necessidades da alma dos homens. A maioria, se perguntados, conseguirão se definir apenas através desses papéis, mas muito poucos serão capazes de sequer definir o que significa ser de fato um homem.

Contrariando talvez suas intenções conscientes, os homens seguem desempenhando esses papéis marcadamente históricos, participando dia a dia de uma troca competitiva e humilhante. Quando se encontram, a sombra do complexo de poder inevitavelmente vem à tona, e os homens passam, ainda que de forma inconsciente, a avaliarem-se uns aos outros e a competirem entre si. Atualizam constantemente o drama arquetípico do poder, com todos os temores e defesas dele resultantes.

E isso nos conduz a um ponto importante no que se refere ao universo psíquico masculino: a vida dos homens é basicamente governada pelo medo. Dificilmente eles serão capazes de admitir isso, pois reconhecer o lugar do medo em suas vidas significa perder o controle sobre as coisas, correr o risco de sentirem-se pouco masculinos e de serem humilhados pelos outros.

No entanto, seus medos estão presentes e aparecem através de duas formas fundamentais: o medo de não estar à altura do que se espera deles e o medo da provação física ou psicológica. O primeiro é o aspecto mais visível da sombra saturnina: a competição, o duelo entre ganhadores e perdedores e a produtividade como medida da masculinidade. O segundo se expressa através da dúvida que sentem em relação à sua habilidade de defenderem a si próprios e à sua família.

A maioria dos homens há de concordar que sente mais medo do sofrimento, do fracasso e da impotência do que a própria morte. E, governados como são pelo medo e incapazes de admitirem isso até para si próprios, procuram compensar seu sentimento de inferioridade através de “patéticos substitutos do poder genuíno” como disse Hollis: um carro possante, uma casa enorme, almoços de interesses, um cargo ou posição importante ou o poder sobre os outros. Sob toda essa exibição de poder, está o medo e, como bem sabemos, um animal com medo torna-se perigoso e não confiável.

Sendo assim, o complexo de poder - a sombra e o legado saturnino - é a força central que governa a vida dos homens. Ele os impulsiona e os fere ao mesmo tempo, e conseqüentemente uns aos outros. O preço de tudo isso é facilmente detectado no sofrimento individual de cada um e na patologia da nossa sociedade: os homens morrem mais cedo do que as mulheres, têm mais probabilidade de abusar de substâncias, de cometer suicídio e de irem para a prisão.

Alguns homens sempre tiveram a consciência dessa sombra, outros estão despertando agora, enquanto que a maior parte ainda sente que não há alternativas e que essa é a única possibilidade que existe. No entanto, o exemplo das mulheres, lutando para se libertar dos grilhões históricos que as aprisionam, confere coragem e torna necessário que os homens realizem o mesmo. Como observou o teólogo dinamarquês Sörem A. Kierkegaard, em meados do século passado, não conseguiremos salvar nossa era, se não assumirmos com convicção de que ela está perecendo. O primeiro requisito é que nos tornemos conscientes de nossas feridas, para que possamos parar de ferir os outros a nossa volta. Esse, portanto, não é apenas um trabalho individual, mas, acima de tudo, um trabalho social.

A sombra de Saturno descansa pesadamente sobre a cabeça de todos os homens. Enquanto continuarem culpando uns aos outros, nada mudará. No entanto, não é mais possível ficar esperando por mudanças do lado de fora, pois elas só começam no interior de cada um. Os homens geralmente sentem mais dificuldade em interiorizar suas experiências, em admitir para si as suas vulnerabilidades. Por isso, a tarefa que se impõe a eles é bem difícil, porém profundamente necessária. Do contrário, continuarão a ferir os que estão a sua volta, e o mundo jamais será um lugar seguro e saudável.



Por Melissa Samrsla Brendler
Psicologa - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS



Fonte: HOLLIS, James. Sob a Sombra de Saturno, a ferida e a cura dos homens. São Paulo: Paulus, 1997.













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