domingo, 9 de abril de 2017

Comendo em Companhia



Rei Arthur e a Távola Redonda



No inferno, as pessoas encontram-se diante de alimentos maravilhosos, mas com colheres tão grandes que não conseguem coloca-las na boca. No céu, eles usam as longas colheres para alimentarem-se uns aos outros.
-         Ditado judeu


Tradicionalmente, comer é algo que em grande medida fazemos em companhia. Esse é um traço distintivamente humano, pois em outras espécies enquanto os filhotes são alimentados, os adultos se defendem sozinhos, com algumas raras exceções. Por isso, repartir a comida é um ato de compromisso social, que requer auto limitação e um certo nível de desenvolvimento da consciência.

Repartir a comida é um ritual fundamental de vinculação social, em que afirmamos nossa identidade comum como membros de uma família ou grupo. Receitas, assim como histórias, são transmitidas com a intenção de se tornarem tradição, e assim criar laços de união entre pessoas e gerações. Comemorações públicas, festivais regionais, celebrações paroquiais envolvem toda uma comunidade, que se reúne para distribuir alimentos ou degustar uma refeição comum, e isso aproxima as pessoas de um determinado lugar, gerando uma experiência de pertinência grupal. Observe, por exemplo, que o significado da palavra companheiro vem da expressão “alguém com quem comemos o pão”.

Ao mesmo tempo em que o alimento une os que dele partilham, também distingue um grupo dos demais. Nossos pratos tradicionais enfatizam nossa identidade de grupo, mas também acontece a mesma coisa com os alimentos que culturalmente nos negamos a comer: as comidas dos povos desconhecidos, os alimentos que não sejam limpos, que sejam repugnantes ou bizarros ao nosso olhar. Poucas características culturais causam uma impressão tão forte em quem viaja do que os costumes alimentares. Depreciar a alimentação tradicional de outros grupos muitas vezes serve como demonstração dos nossos preconceitos e da nossa xenofobia. Por exemplo, os ingleses chamam os franceses de rãs e os alemães de repolhos. Por isso, comer o que outra cultura come muitas vezes se constitui um passo para a aproximação e assimilação das diferenças existentes.

O ato de sentar-se junto para comer significa deixar de lado as diferenças, e por isso existe a idéia de que não se deve discutir assuntos polêmicos durante as refeições. A mesa na qual se senta para comer deve ser um local de conciliações, em que as pessoas descobrem sua recíproca humanidade comum. Esse é o lugar em que o relacionamento é alimentado e em que ocorrerem demonstrações de afeto pelos seus participantes. Até mesmo o almoço de negócios busca capitalizar esse efeito de harmonização, para criar uma atmosfera em que se possa chegar a algum acordo.

Nesse sentido, uma questão bem delicada é justamente quem convidar para vir à mesa. Normalmente preferimos convidar somente aqueles com quem nos sentimos confortáveis. No entanto, ficamos aflitos em relação aos excluídos, porque eles podem sentir-se ofendidos e acabar nos causando alguns problemas. Vamos para o mito: na história mitológica do casamento de Peleus e Tétis, por exemplo, Eris foi compreensivelmente deixada de fora. Porém, ela conseguiu furar a cerca e atiçou a competitividade entre Hera, Atena e Afodite, resultando a guerra de Tróia. Na celebração do nascimento da “Bela Adormecida”, foram convidadas apenas três fadas. A quarta, a bruxa Malévola, chegou sem convite e lançou sua maldição. Por isso, tendo o ato de comer em companhia tamanha importância social e cultural, as conseqüências das nossas escolhas serão sempre inevitáveis.

Por outro lado, as pessoas que seguem determinadas restrições de dieta também podem causar alguns incômodos à mesa, pois podemos sentir essa atitude como rejeição ou como se não estivessem participando totalmente. Sendo assim, é preciso de nós um esforço extra de consciência para conseguir separar os princípios da partilha e da generosidade, de um lado, da substância concreta dos alimentos, de outro, para perceber que uma troca equivalente pode ocorrer em um nível mais sutil; e que forçar alguém a comer quando essa pessoa não quer ou não deve, seja lá por que motivos, é antes de tudo falta de respeito com outro.

Uma refeição pode e deve ser uma oportunidade de interação livre, mas ela também pode ser uma demonstração de hierarquia como, por exemplo, a tradição antiga de dividir a carne de acordo com o status na família, ou o hábito de alguns poucos escolhidos poderem comer em separado na sala de refeições executiva, ou na mesa mais elevada. Lugares planejados deixam claro quem tem privilégios à mesa, e as pessoas mais importantes são servidas primeiro e começam a comer antes dos demais. Felizmente, essa questão da hierarquia foi lindamente resolvida pelo legendário Rei Arthur e sua igualitária távola redonda.

No que se refere ao objeto mesa, ele por si só, é uma imagem que evoca a ideia de reunião. A mesa é um foco importante no processo de socialização e educação das crianças. É o lugar onde elas também devem aprender a auto contenção e as regras do seu “clã”. A mesa da nossa infância é geralmente o local onde concentra-se grande parte das nossas recordações familiares. E, sendo assim, más experiências vinculadas com a mesa no passado, podem nos levar a futuros problemas relacionados à alimentação.

Enfim, comer em companhia, assim como menus rituais tradicionais encarnam a ideia de comunhão e a estabilidade social. No entanto, nas sociedades atuais, onde o extenso grupo familiar acabou por se ver rompido e onde até mesmo a família “nuclear” freqüentemente está incompleta, os pais tem pouco tempo para preparar a comida, e a refeição familiar regular passa a ser geralmente substituída por comidas pré preparadas ou instantâneas. Conseqüentemente, para muitas pessoas que estão crescendo atualmente, a mesa poderá perder seu significado tradicional. A falta de coesão social espelha-se nos padrões alimentares irregulares, em sanduíches engolidos às pressas e em trânsito, em cafés da manhã tomados em pé, num balcão, em alimentos cujas porções já vem embrulhadas, em marmitas comidas em silêncio e solitariamente. Quando moram sozinhas, como é tão comum hoje em dia, as pessoas geralmente deixam de cozinhar e, sendo assim, quando o alimento não é preparado para ser dividido, perdemos um importante ritual de expressão de nossa identidade social e da demonstração do nosso afeto pelos outros.

Por outro lado, o fator positivo, é que hoje temos muito mais flexibilidade, muito mais liberdade em relação à tirania dos horários e cardápios fixos do que antigamente, e um ecletismo alimentar muito maior que nos proporciona diversas possibilidades de livre interação social. Hoje, mais do que nunca, comer em companhia é uma questão de escolha sobre qual grupo vai receber nossas demonstrações expressas de afiliação, sejam pelas afinidades gastronômicas, sejam pelas receitas que oferecemos.


Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS



Baseado no livro de Eve Jackson: Alimento e transformação: imagens e simbolismo da alimentação. Editora Paulus, São Paulo, 1999.





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