Rei Arthur e a Távola Redonda |
No inferno, as pessoas encontram-se diante
de alimentos maravilhosos, mas com colheres tão grandes que não conseguem
coloca-las na boca. No céu, eles usam as longas colheres para alimentarem-se
uns aos outros.
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Ditado
judeu
Tradicionalmente, comer é algo que em grande medida
fazemos em companhia. Esse é um traço distintivamente humano, pois em outras
espécies enquanto os filhotes são alimentados, os adultos se defendem sozinhos,
com algumas raras exceções. Por isso, repartir a comida é um ato de compromisso
social, que requer auto limitação e um certo nível de desenvolvimento da
consciência.
Repartir
a comida é um ritual fundamental de vinculação social, em que afirmamos nossa
identidade comum como membros de uma família ou grupo. Receitas, assim como
histórias, são transmitidas com a intenção de se tornarem tradição, e assim
criar laços de união entre pessoas e gerações. Comemorações públicas, festivais
regionais, celebrações paroquiais envolvem toda uma comunidade, que se reúne
para distribuir alimentos ou degustar uma refeição comum, e isso aproxima as
pessoas de um determinado lugar, gerando uma experiência de pertinência grupal.
Observe, por exemplo, que o significado da palavra companheiro vem da expressão
“alguém com quem comemos o pão”.
Ao
mesmo tempo em que o alimento une os que dele partilham, também distingue um
grupo dos demais. Nossos pratos tradicionais enfatizam nossa identidade de
grupo, mas também acontece a mesma coisa com os alimentos que culturalmente nos
negamos a comer: as comidas dos povos desconhecidos, os alimentos que não sejam
limpos, que sejam repugnantes ou bizarros ao nosso olhar. Poucas
características culturais causam uma impressão tão forte em quem viaja do que
os costumes alimentares. Depreciar a alimentação tradicional de outros grupos
muitas vezes serve como demonstração dos nossos preconceitos e da nossa
xenofobia. Por exemplo, os ingleses chamam os franceses de rãs e os
alemães de repolhos. Por isso, comer o que outra cultura come muitas
vezes se constitui um passo para a aproximação e assimilação das diferenças
existentes.
O
ato de sentar-se junto para comer significa deixar de lado as diferenças, e por
isso existe a idéia de que não se deve discutir assuntos polêmicos durante as
refeições. A mesa na qual se senta para comer deve ser um local de
conciliações, em que as pessoas descobrem sua recíproca humanidade comum. Esse
é o lugar em que o relacionamento é alimentado e em que ocorrerem demonstrações
de afeto pelos seus participantes. Até mesmo o almoço de negócios busca
capitalizar esse efeito de harmonização, para criar uma atmosfera em que se
possa chegar a algum acordo.
Nesse
sentido, uma questão bem delicada é justamente quem convidar para vir à mesa. Normalmente preferimos convidar somente aqueles com quem nos sentimos
confortáveis. No entanto, ficamos aflitos em relação aos excluídos, porque
eles podem sentir-se ofendidos e acabar nos causando alguns problemas. Vamos
para o mito: na história mitológica do casamento de Peleus e Tétis, por
exemplo, Eris foi compreensivelmente deixada de fora. Porém, ela conseguiu
furar a cerca e atiçou a competitividade entre Hera, Atena e Afodite,
resultando a guerra de Tróia. Na celebração do nascimento da “Bela Adormecida”,
foram convidadas apenas três fadas. A quarta, a bruxa Malévola, chegou sem
convite e lançou sua maldição. Por isso, tendo o ato de comer em companhia
tamanha importância social e cultural, as conseqüências das nossas escolhas
serão sempre inevitáveis.
Por
outro lado, as pessoas que seguem determinadas restrições de dieta também podem
causar alguns incômodos à mesa, pois podemos sentir essa atitude como rejeição
ou como se não estivessem participando totalmente. Sendo assim, é preciso de
nós um esforço extra de consciência para conseguir separar os princípios da
partilha e da generosidade, de um lado, da substância concreta dos alimentos,
de outro, para perceber que uma troca equivalente pode ocorrer em um nível mais
sutil; e que forçar alguém a comer quando essa pessoa não quer ou não deve,
seja lá por que motivos, é antes de tudo falta de respeito com outro.
Uma
refeição pode e deve ser uma oportunidade de interação livre, mas ela também
pode ser uma demonstração de hierarquia como, por exemplo, a tradição antiga de
dividir a carne de acordo com o status na família, ou o hábito de alguns poucos
escolhidos poderem comer em separado na sala de refeições executiva, ou na mesa
mais elevada. Lugares planejados deixam claro quem tem privilégios à mesa, e as
pessoas mais importantes são servidas primeiro e começam a comer antes dos
demais. Felizmente, essa questão da hierarquia foi lindamente resolvida pelo
legendário Rei Arthur e sua igualitária távola redonda.
No
que se refere ao objeto mesa, ele por si só, é uma imagem que evoca a ideia de
reunião. A mesa é um foco importante no processo de socialização e educação das
crianças. É o lugar onde elas também devem aprender a auto contenção e as
regras do seu “clã”. A mesa da nossa infância é geralmente o local onde
concentra-se grande parte das nossas recordações familiares. E, sendo assim,
más experiências vinculadas com a mesa no passado, podem nos levar a futuros
problemas relacionados à alimentação.
Enfim,
comer em companhia, assim como menus rituais tradicionais encarnam a ideia de comunhão e a estabilidade social. No entanto, nas sociedades atuais, onde o
extenso grupo familiar acabou por se ver rompido e onde até mesmo a família
“nuclear” freqüentemente está incompleta, os pais tem pouco tempo para preparar
a comida, e a refeição familiar regular passa a ser geralmente substituída por
comidas pré preparadas ou instantâneas. Conseqüentemente, para muitas pessoas
que estão crescendo atualmente, a mesa poderá perder seu significado
tradicional. A falta de coesão social espelha-se nos padrões alimentares
irregulares, em sanduíches engolidos às pressas e em trânsito, em cafés da
manhã tomados em pé, num balcão, em alimentos cujas porções já vem embrulhadas,
em marmitas comidas em silêncio e solitariamente. Quando moram sozinhas, como é
tão comum hoje em dia, as pessoas geralmente deixam de cozinhar e, sendo assim,
quando o alimento não é preparado para ser dividido, perdemos um importante
ritual de expressão de nossa identidade social e da demonstração do nosso afeto
pelos outros.
Por
outro lado, o fator positivo, é que hoje temos muito mais flexibilidade, muito
mais liberdade em relação à tirania dos horários e cardápios fixos do que
antigamente, e um ecletismo alimentar muito maior que nos proporciona diversas
possibilidades de livre interação social. Hoje, mais do que nunca, comer em
companhia é uma questão de escolha sobre qual grupo vai receber nossas
demonstrações expressas de afiliação, sejam pelas afinidades gastronômicas,
sejam pelas receitas que oferecemos.
Por
Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS
Baseado
no livro de Eve Jackson: Alimento e transformação: imagens e simbolismo da
alimentação. Editora Paulus, São Paulo, 1999.
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