domingo, 6 de novembro de 2016

Materialismo e Alquimia: Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta.





Embora se manifestem como elementos contrários, matéria e espírito, ou masculino e feminino, constituem um todo que se complementam, conforme a imagem do yin e yang, símbolo que representa a união e o equilíbrio entre os opostos. Esse equilíbrio tornou-se cada vez mais precário ao longo do desenvolvimento da consciência humana. A excessiva valorização do princípio masculino acabou nos levando ao individualismo, na medida em que o ego, a razão e a consciência foram sendo considerados os únicos donos e criadores de todas as coisas.

O feminino, embora tenha sido considerado algo inferior e desprovido de importância, nunca deixou de existir. Ele permaneceu num nível primitivo e pouco desenvolvido, buscando meios de se manifestar em um mundo dominado por juízos, valores e leis patriarcais. Com isso, o que seria ligação ou conexão com a terra, transformou-se em uma obsessão apaixonada pela matéria, ou por tudo aquilo que pode ser visto, tocado e usufruído pelos sentidos. O materialismo, quando extremado, representa a forma negativa como o homem se relaciona com a terra e com a natureza. Assim, o feminino, ao ser rechaçado, reprimido e mantido inconsciente, passou a mostrar-se no seu aspecto negativo.

O interesse na matéria, enquanto valorização daquilo que se mostra de forma concreta e objetiva, é algo encontrado também na Alquimia. As origens dessa antiga tradição remontam a Hermes Trismegisto e ao Deus egípcio Toth. Consistia em um vasto conjunto de técnicas e ensinamentos que buscavam, através da opus alquímica, transformar o vil metal em ouro.  O vil metal, algo desprovido de valor e importância, é a prima materia de um longo e meticuloso trabalho que consistia na busca pela pedra filosofal, o lapis philosoforum, a substância capaz de transformar os metais em ouro.

Concomitante a essa transformação, de onde se extraia algo superior de algo inferior, acontecia a transformação espiritual do alquimista, que ao executar sua obra, confrontava-se consigo próprio através de suas projeções sobre o mundo exterior. Assim, a mudança que acontecia fora era acompanhada de uma mudança que acontecia dentro, no interior de sua psique. O cerne da opus alquímica, deste modo, não era a transformação meramente física da matéria, mas uma transformação dos valores e do caráter do ser humano, este sim a pedra a ser transformada no verdadeiro ouro filosofal.

Muito diferente dos alquimistas, que viam na escuridão da matéria um caminho para o autoconhecimento, o homem de hoje, desenraizado e alienado de sua própria natureza, vive uma relação negativa com aquilo que poderia ser a prima materia de uma transformação maior de si e de seus valores. Por fixar seus interesses somente naquilo que se mostra de forma concreta, como os bens de consumo, por exemplo, o indivíduo passou a acreditar que o sentido e a finalidade da vida são impostos de fora para dentro, e não algo a ser buscado no âmago de cada um.  O homem moderno não só deixou de cultivar a cultura da alma, como perdeu também a capacidade de se voltar para dentro, para o seu mundo interior.

A falta de introspecção afasta o homem da realidade da sua alma e também impede que o mundo material seja compreendido como um recipiente das projeções do seu mundo interior, como ocorre, por exemplo, quando um sentimento de inferioridade e baixa auto estima é compensado pela posse de bens materiais. Esse tipo de atitude, quando utilizada para suprir um vazio ou falta de sentido, só faz aumentar a dependência e o apego em relação a esses bens, pois geram uma falsa sensação de prazer e bem-estar.

Quanto à isso, Jung dizia que “Não há dúvida de que é mais confortável morar numa casa bem ordenada e instalada, mas isso não resolve a questão de saber quem é o habitante desta casa e se sua alma também goza da mesma ordem e do mesmo asseio que a morada que serve à vida exterior. Ensina-nos a experiência que o homem voltado excessivamente para as coisas exteriores nunca se contentará com o estritamente necessário, ambicionando sempre o mais e melhor, que ele busca no exterior. Assim procedendo, se esquece por completo de que internamente continua sempre o mesmo, apesar dos sucessos exteriores, e é por isso que se queixa de sua pobreza quando só possui um carro, em vez de dois, como os outros”.

A metáfora da transformação do vil metal em ouro, ou seja, da transformação da prima materia na pedra filosofal, corresponde ao processo de individuação, enquanto busca e realização da nossa totalidade e singularidade mais última, única e incomparável. Processo esse que transforma a nossa vida, conferindo-lhe um significado maior, da mesma forma que os alquimistas buscavam extrair o ouro daquilo que não tinha valor algum.

Essa busca requer voltar o nosso olhar para o mundo interior, que é tão real quanto a materialidade daquilo que nos cerca. Caso contrário, estaremos sujeitos a sucumbir ao ideal da valorização irracional dos bens materiais, sendo levados a acreditar que só eles possuem algum valor legítimo. Na medida em que nos submetemos cegamente a isso, o valor atribuído a nós mesmos diminui, permanecendo na condição de algo vil e sem importância, enquanto tudo o que é exterior torna-se atraente e sedutor.

Precisamos recuperar nossos conteúdos interiores que estão projetados na materialidade do mundo exterior e reintegra-los à nossa consciência. Essa seria uma forma de encontrar novos sentidos para a vida, pois como disse Jung “é a consciência de que a vida tem uma significação mais ampla que eleva o homem acima do simples mecanismo de ganhar e gastar”. Só assim poderemos acessar nosso mundo interior e despertar para nós mesmos, pois, como já é sabido através daquela famosa frase do Jung, “aquele que olha para fora sonha, aquele que olha para dentro desperta”. Esse é o caminho da individuação, a busca pela pedra filosofal, que nos liberta do materialismo e nos torna cada vez mais livres e conscientes do nosso próprio potencial de transformação.


Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS


Adaptado de: YABUSCHITA, F. Massao. The Dark Side of the Moon: a obra prima do Pink Floyd segundo a Psicologia Junguiana. Içara/SC: Dracaena, 2012.







Um comentário: