sábado, 22 de outubro de 2016

O Sagrado Feminino: retornando à essência.





No tempo das primeiras expressões religiosas da humanidade, mais precisamente no período neolítico, muitas evidências arqueológicas apontam para uma característica comum em todas as partes do mundo: o culto à Grande Mãe. Doadora, curadora e também ceifadora da vida, essa Deusa assumiu diversos nomes como Gaia, Pachamama, Diana, Isis, Ishtar, entre outros. Foi revestida com as particularidades de cada cultura, sendo a generosa personificação da Terra.

As mulheres, por serem as representantes dessa Grande Mãe, possuíam um lugar de respeito e autonomia dentro dessa forma de organização social. Porém, a lógica dessa manifestação religiosa era bastante igualitária. Não era uma forma de dominação como o patriarcado acabou construindo.  Homens e mulheres eram, da mesma forma, filhos desta Terra e todos chegaram ao mundo através de um útero. Portanto, a reverência à natureza era o fundamento dos cultos à Grande Mãe, e entendia-se que a sobrevivência só era possível porque ela fornecia tudo o que se precisa para viver.

Com a transição da sociedade de coleta para a de caça, a partir de determinadas mudanças climáticas e invasões de povos bárbaros, as características típicas do masculino foram se tornando mais valorizadas, como a força física, a dominação do mais forte sobre o mais fraco e a lógica do pensamento linear (o feminino possui uma lógica mais intuitiva e sistêmica). Gradativamente, os mitos e ritos da religião da Deusa foram sendo substituídos pelo culto a divindades masculinas que, por sua vez, validavam a cultura da dominação e da guerra. E, como sabemos bem, a mulher perdeu sua autonomia e importância e passou a desempenhar um papel secundário, inferior ou coadjuvante.

A mulher, que antes era amada e reconhecida como humana e divina ao mesmo tempo e que, assim como a Terra, era livre e possuía algo de selvagem e indomável em sua alma e em seus olhos, passou a ser temida, reprimida e banida do convívio dos demais, quando não queimada, amordaçada e violentada. No entanto, a mulher é parte da natureza, ou melhor, ela é a própria natureza e não pode ser simplesmente aniquilada. Embora o que ainda possuímos são apenas resquícios, sua essência permanece viva nos confins do inconsciente de homens e mulheres que, em vista de toda essa repressão, sentem um profundo sentimento de vazio e solidão em suas vidas.

Resgatar o Sagrado Feminino hoje em dia é fazer um retorno das mulheres e homens contemporâneos a essa essência e a essa consciência de que a natureza, bem como seus corpos, ciclos, intuição, emoções e sensibilidade, entre outros aspectos, são tão importantes que merecem ser reverenciados. Quando revestimos um objeto, pessoa ou situação em um véu de máximo respeito e significado, isso se torna Sagrado para nós.  Retomar o sentido do Sagrado Feminino não significa voltar ao culto da Grande Mãe como fé e religião, mas simplesmente honrar os aspectos particulares da experiência biológica, social, psicológica e espiritual do que é ser uma mulher e também do feminino mais amplo que nos habita, tanto em homens quanto em mulheres.

No que se refere às mulheres, só de mudar o paradigma em torno da natureza de seus corpos e de seus ciclos menstruais já é um avanço bastante significativo. E isso exige apenas disponibilidade para o autoconhecimento e aceitação. A maioria das mulheres encontra-se profundamente desconectada de si mesma. Sentem inúmeros desconfortos físicos e emocionais, e as que tomam hormônios de forma contínua, acabam por não conhecerem as características de suas menstruações e de seus ciclos. Por estarem tão impregnadas pelo paradigma patriarcal, muitas mulheres não reconhecem mais, ou não conseguem mais acessar internamente a vivência saudável e natural da sua sexualidade e dos processos biológicos e psicológicos da menstruação, gestação, parto, amamentação e menopausa.

Quando a mulher reverencia o sagrado feminino dentro de si, a menstruação passa a ser vista como uma dádiva que lhe permite renovar-se fisicamente e energeticamente todos os meses, e não como um atraso ou algo sujo, incômodo e vergonhoso. E, assim da mesma forma, a vivência da sua sexualidade e de suas emoções. Além do mais, uma mulher que desperta o Sagrado feminino internamente, aprende que é autônoma e livre para escolher o que a faz se sentir melhor, independente disso ter um rótulo culturalmente construído para ser feminino ou não. Essa mulher tem consciência de si mesma e de suas necessidades, e aprende a se amar e a se respeitar em sua integralidade, sem excluir, renegar e maltratar seu corpo e sua subjetividade.

Por outro lado, o homem que conseguiu resgatar a essência do Sagrado Feminino dentro de si, consegue honrar e proteger o feminino que se manifesta fora, na forma da mulher e também na forma da Mãe Terra. Decidem conscientemente não ser mais tão competitivos, pois compreendem e reconhecem os princípios da irmandade, da parceria, da cooperação e do respeito. Não escolhem suas parceiras pela forma física, mas pela conexão que sentem em sua alma, mente e coração. Não baseiam a sua sexualidade em uma psicogênese de fantasias oriundas da pornografia e da objetificação do corpo da mulher, mas em verdadeiras sensações e no empenho em conhecer genuinamente seu corpo e o corpo de uma mulher. Aceitam-se vulneráveis e são capazes de entrar em contato com as suas emoções, externalizando o que sentem e aceitando os processos internos dos outros. Por isso, também se sentem responsáveis pela cura e manutenção de suas relações. Ao terem filhos, sabem que o cuidado não é exclusivamente da mãe. Honram, admiram e respeitam os movimentos cíclicos das mulheres e os processos naturais da maternidade, bem como seus próprios movimentos internos. Estes homens se assumem como cuidadores no mais amplo sentido, e prezam pela sustentabilidade e pelo consumo consciente.

Retomar a essência do Sagrado Feminino é resgatar a sabedoria milenar de que somos todos filhos desta Grande Mãe Terra. Relembrar que nossos corpos e nossas emoções são parte integrantes da natureza, e que nós somos, viemos e precisamos dela para continuar a viver e a evoluir. E, acima de tudo, reconhecer que ela tem sua própria sabedoria, que precisa ser honrada e respeitada por todos. Homens e mulheres precisam voltar a se harmonizar com o que há de mais natural, reintegrando o princípio básico de que estamos todos ligados de alguma forma, curando e se libertando da sensação de isolamento e artificialidade que é tão adoecedora e que já produziu incontáveis conseqüências desastrosas para todos nós.


Por Melissa Samrsla Brendler
Psicologa - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS







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Fontes:
CARDOSO, Morena. O Sagrado Masculino. Disponível em http://www.danzamedicina.net/blog/sagradomasculino.
CARVALHO, Mayara S. Mas o que é esse tal de Sagrado Feminino?. Disponível em http://caminhosterapeuticos.com.br/2016/09/03/mas-o-que-e-esse-tal-de-sagrado-feminino/.
EISLER, Riane. O Prazer Sagrado: sexo, mito e política do corpo. São Paulo: Rocco, 2000.
ESTES, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os Lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. São Paulo: Rocco, 2014.




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