sábado, 28 de maio de 2016

Eu sei, mas não devia...


Marina Colasanti


O texto da Marina Colasanti "Eu sei mas não devia" foi publicado pela editora Rocco, em 1996, como parte integrante do livro de mesmo nome. Antigo,mas profundamente atual, ele traz uma riqueza de conteúdo para refletirmos sempre na nossa vida, principalmente nos dias de hoje em que a maioria de nós vive uma vida robótica, frenética, acelerada e destituída de um significado mais profundo. Pelo fato de não conseguirmos ter forças, ou talvez por comodismo mesmo, porque questionar e mudar envolve muito esforço e energia da nossa parte, vamos nos conformando com os diversos padrões que nos são impostos pela família e pela sociedade. 

Vamos aceitando aquilo que nos é dado e vamos sendo engolidos pela nossa rotina e pelos nossos hábitos, que vão se tornando cada vez mais arraigados. Vamos morrendo um pouco a cada dia, nos anestesiando em doses homeopáticas. Por fim, sobra-nos pouco tempo para pensar sobre nós mesmos, para refletirmos sobre qual é o verdadeiro sentido da nossa vida, sobre quem somos nós aqui e agora, e diante desta vastidão do Universo

Paramos de perguntar, paramos de questionar e paramos de buscar o conhecimento (ou o auto-conhecimento) que nos faz abrir a mente, desatar os nós e desfazer estigmas. E aceitando tudo isso, paramos de olhar o mundo sob as mais variadas perspectivas possíveis que existem, e podem vir a existir, se a gente se permitir ousar, criar e imaginar. Como já disse um certo senhor por aí: “A vida se gasta. E é lamentável gastar a vida para perder a liberdade.” 

Segue abaixo o texto acompanhado da bela interpretação de Antonio Abujamra na época do Programa Provocações:



Eu sei, mas não devia 

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, a gente logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes.
A abrir as revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e assistir a comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.






Referência: EU SEI, MAS NÃO DEVIA. Autor: Marina Colasanti. Editora Rocco, 1996. As crônicas reunidas neste livro são tecidas com a sensibilidade feminina de quem, com emoção, fala das questões do dia-a-dia, do amor, dos meninos de rua, de viagens e culturas, das coisas da vida - que a gente se acostuma, mas não devia.








Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831

Atende em Porto Alegre/RS

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