terça-feira, 28 de agosto de 2018

ENANTIODROMIA: a busca por equilíbrio



Enantiodromia é um termo extraído da filosofia de Heráclito que significa a transformação de algo no seu oposto. A mesma mudança também é expressa pelo provérbio de William Blake: “Excesso de pranto ri. Excesso de riso chora”. Esse conceito foi reformulado por Carl Gustav Jung para ser aplicado ao funcionamento dos processos energéticos da mente humana, quando existe um conflito entre os interesses da mente consciente e inconsciente. A psique, por meio da enantiodromia, nos mostra que alguns aspectos da vida estão sendo excessivamente desenvolvidos ou valorizados, enquanto que outros, de igual importância, estão sendo desprezados ou ignorados. Esse movimento tanto pode ocorrer no âmbito da psique coletiva, quanto no da psique individual.

Para a psicologia junguiana, nosso estado psicológico depende da forma como administramos e conduzimos o equilíbrio entre os opostos: indivíduo e sociedade, masculino e feminino, consciente e inconsciente, ego e sombra, extroversão e introversão, sofrimento e alegria, amor e desejo de poder, matéria e psique, espirito e corpo, razão e emoção, entre tantos outros.  Quando assumimos uma atitude unilateral ou quando o curso da nossa vida está seguindo uma única direção em termos de valores e interesses, pode acontecer de se constelarem na consciência os conteúdos que até então foram negligenciados.  “Se a vida por algum motivo toma uma direção unilateral, produz-se no inconsciente, por razão de autorregularão do organismo, um acúmulo de todos aqueles fatores que na vida consciente não tiveram voz, nem vez” (Carl Jung).

O inconsciente atua de modo compensatório em relação à consciência, complementando-a com conteúdos que favoreçam o equilíbrio. Esse movimento, inclusive, é o responsável pela formação dos processos neuróticos e psicopatológicos, ou por sintomas psicossomáticos, gerando doenças como uma última tentativa de integração. Certamente, essas manifestações devem ser entendidas através de uma perspectiva holística/sistêmica, e não linear. Ou seja, bem e mal, certo e errado, bom e ruim, sob a ótica junguiana, são conceitos relativos e não absolutos. Como Jung diz, "o mal pode ser necessário para produzir o bem, e o bem possivelmente pode levar ao mal". Tudo vai depender da dinâmica psíquica de cada um ou de cada sociedade.

Nesse sentido, a atitude correta não é tentarmos acabar com os sintomas a todo custo, e sim tentarmos nos informar sobre o que eles significam, o que eles nos ensinam, qual sua finalidade e sentido. Como Jung diz, devemos ser gratos por eles, pois são a oportunidade que temos de conhecer realmente quem somos. Os sintomas, de qualquer natureza, só terão fim quando tivermos liquidado nossas falsas atitudes. Portanto, na perspectiva junguiana, são os sintomas que nos curam, e não o contrário. A doença é vista como uma tentativa da natureza para nos curar. “Podemos aprender muita coisa da doença para a nossa saúde, e aquilo que parece (...) absolutamente dispensável, contém precisamente o verdadeiro ouro que não encontramos em outra parte” (Carl Jung).

No âmbito da nossa cultura patriarcal, por exemplo, há uma valorização excessiva de todas as características associadas ao masculino – o Logos, a claridade, a razão, a consciência, a ordem, a objetividade, a lógica, a competitividade, a atividade, a força, a realidade física e material – em detrimento de tudo aquilo que está relacionado ao feminino - o Eros, o obscuro, a intuição, o caos, a flexibilidade, a cooperação, a passividade, a fraqueza, o instintivo e criativo, o mundo das emoções, dos mistérios, dos sonhos e do inconsciente. Esse desequilíbrio tem se refletido em diversos conflitos da nossa sociedade, na forma como lidamos com a natureza, com o corpo e as emoções, com as mulheres, com o casamento e os relacionamentos, com a saúde e a expressão mais íntima do nosso ser. A hipertrofia e desgaste da ordem patriarcal vigente fez surgir, por enantiodromia, um verdadeiro caos que, por sua vez, tem nos levado a um trabalho ativo e consciente na construção de uma nova ordem com mais harmonia entre esses aspectos.

Portanto, a vida requer equilíbrio. Ignorarmos esse fato é vivermos de forma alienada, o que levará inevitavelmente a nos sujeitarmos às intervenções do inconsciente, não deixando dúvidas de que a nossa vida está sendo indevidamente conduzida. A única pessoa que escapa da lei implacável da enantiodromia é aquela que sabe separar-se do inconsciente sem reprimi-lo, mas colocando-se claramente diante dele como aquilo que ele realmente é: uma instância reguladora, complementar, e que abriga tudo aquilo que ainda não sabemos sobre nós mesmos.


Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga – CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS


Ref.: CAVALCANTI, Raissa. O Casamento do Sol com a Lua. São Paulo: Círculo do Livro, 1992. JUNG, Carl Gustav. Civilização em Transição. Obras Completas, vol. 10/3 .Petrópolis: Vozes, 2011. JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Obras Completas, vol. 9/1 . Petrópolis: Vozes, 2011. YABUSCHITA. Fabio Massao. The Dark Side of the Moon, a obra-prima do Pink Floyd segundo a Psicologia Junguiana. São Paulo: Dracena, 2012.







quinta-feira, 16 de agosto de 2018

OXUM, a Rainha do Amor

A partir do estudo das religiões, mitos,  contos de fada, fantasias, sonhos, ideias delirantes e ilusões dos indivíduos, Jung observou a presença de determinados temas que reaparecem sempre e por toda parte. Esses temas se manifestam através de imagens que nos impressionam, nos influenciam e nos fascinam. Essas imagens têm origem a partir daquilo que Jung chamou de arquétipos: formas pré-existentes e inconscientes que correspondem psiquicamente aos instintos.  Os arquétipos fazem parte da estrutura psíquica herdada, estão presentes no Inconsciente Coletivo da Humanidade, e condicionam a expressão e o desenvolvimento da psique de todos nós.


Dentre as mais variadas IMAGENS ARQUETÍPICAS DO FEMININO E DA GRANDE MÃE também encontramos...
OXUM, a Rainha do Amor!




Conta o mito que quando todos os orixás chegaram à Terra, organizaram reuniões onde as mulheres não eram admitidas. Oxum ficou tão aborrecida por ser posta de lado e não poder participar, que tornou as mulheres estéreis e impediu que as atividades desenvolvidas pelos deuses chegassem a resultados favoráveis. Desesperados, os orixás dirigiram-se a Olorum em busca de ajuda. Ele explicou aos deuses que sem a presença de Oxum, com seu poder sobre a fecundidade, nenhum empreendimento poderia dar certo. Então, os orixás convidaram Oxum a participar dos trabalhos, o que ela acabou aceitando depois de muita insistência. E a seguir, todas as mulheres tornaram-se novamente fecundas e todos os projetos dos orixás obtiveram bons resultados.

Na mitologia africana, OXUM é a deusa do Amor, está ligada à abundância e à fertilidade, propiciando a fecundidade a tudo que tem possibilidade de crescer. Rainha das águas doces e frescas, dos rios e das cachoeiras, distribui riquezas e rege com sabedoria o reino da fertilidade e das gestações. Como diz no mito, sem ela não é possível levar a cabo qualquer empreendimento. Oxum enaltece os atributos femininos, tem orgulho do poder fecundador das mulheres e da sua capacidade de gerar. É bela e cultiva a vaidade e a beleza como atributos do poder feminino. Um de seus símbolos é o espelho, no qual ela toma consciência da sua beleza. Ao percebe-la, compreende seu poder de sedução e sua utilidade. Por isso, além de usar o espelho como reflexo de sua beleza, Oxum também passa a usa-lo como escudo. O espelho, quando invertido, cega e paralisa os inimigos. O que significa que a beleza, como atributo feminino, pode ser usada com mais de um propósito: estar à serviço de Eros (o Amor) ou estar à serviço de sua sombra (o Poder), tornando-se uma arma sedutora que prende e cega.



Oxum representa o tipo de mulher que usa seus atributos femininos para conquistar os homens: a voz doce e suave, o sorriso e a alegria dengosa. É uma mulher que se mostra sensual, volúvel e inconstante. Está sempre atrás de coisas novas e imprevistas, sempre em busca de mudanças e transformações, ao mesmo tempo em que pode se mostrar calma e tranquila. Os homens geralmente caem vítimas da sua sedução, e ela faz o que quer através desse poder. Tem grande habilidade nas artes eróticas, fazendo um paralelo perfeito com a Afrodite da mitologia grega. Quando dança, expressa o prazer de ser sensual, bonita e desejada.

Oxum também é a protetora das mulheres gestantes e das crianças. Está ligada àquelas qualidades e dinamismos femininos que pertencem aos mistérios do nascimento e renascimento. Por isso, representa as qualidades femininas primordiais ligadas à origem da consciência, o feminino mais puro e natural. E, por ser assim, possui uma grande força energética instintiva, o domínio sobre si mesma, não admitindo ser controlada. A única submissão possível é à natureza e ao seu próprio poder.

Oxum está associada à natureza feminina instintiva, que se expressa em toda a sua espontaneidade e ausência de limites e de controle. É a feminilidade em si mesma, que não está sob o domínio ou a regência do masculino, do Logos ou do patriarcado. É como se ela fosse a vegetação, que se alastra em sua expansão natural. Assim é o principio feminino, que rege a si próprio, de acordo com a sua essência. É livre, não pode ser preso, enquadrado ou possuído. É a mulher dona de si mesma, orgulhosa de sua feminilidade, que não admite que a tomem como posse e que se orienta, essencialmente, por princípios internos e não por controle ou regras externas.

Quando o arquétipo representado por Oxum manifesta-se em nossas vidas, tanto no homem quanto na mulher, ele nos brinda com  os melhores atributos femininos, representados pela doçura do mel e pelo frescor de suas águas. Oxum é tranquilidade, leveza, criatividade, imaginação fecunda, alegria de viver, sensualidade,  sedução, espontaneidade, fertilidade, abundância, amabilidade e capacidade de gerar e desfrutar os prazeres da vida. 

ORA YÈYÉ O!!!






Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP O713831
Atende em Porto Alegre - RS



Ref.: CAVALCANTI, Raissa. O Casamento do Sol com a Lua. São Paulo: Circulo do Livro, 1990. JUNG, Carl Gustav Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2OOO. MOURÃO, Hellen Reis. Oxum, a Afrodite afro-brasileira. Disponível no site Café com Jung: www.cafecomjung.com

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

LIBERANDO O CORAÇÃO: o florescer do sentimento





Segundo Marie Louise Von-Franz, psicóloga e importante continuadora do trabalho de Carl Gustav Jung, o problema número um de nossa época é o fato de estarmos erigindo um muro de racionalidade em nossa sociedade, impenetrável ao sentimento. Como consequência, estamos perdendo a capacidade de amar e sermos amados. A única coisa que poderia nos salvar de cairmos numa sociedade de massas super-racional, superorganizada e que sufoca e anula o individuo, de acordo com ela, seria uma reavaliação dos sentimentos pessoais. E, felizmente, muita gente está acordando para isso.

A massificação da sociedade advém da super população do planeta, a qual exige uma ampla organização que sufoca o indivíduo. Há regras, parâmetros e estatísticas demais, e tudo isso é sempre muito impessoal: eles se aplicam a todos. Por outro lado, se formos estudar ou visitar uma tribo primitiva ou uma comunidade agrícola veremos que isso não acontece. Nelas todos se conhecem, e cada um se relaciona pessoalmente com o outro. Os portadores de distúrbios mentais, por exemplo, não costumam ser afastados ou recolhidos em instituições. A sociedade simplesmente os tolera.

Nesse sentido, Von Franz lembra de uma situação que ocorreu quando voltou ao vilarejo onde cresceu. Um homem chegou à ela e disse que seu pai era cleptomaníaco e que se algo fosse roubado era favor não chamarem a polícia, mas avisa-lo que ele devolveria tudo. Assim, o pobre velho não precisava ser internado. Todos sabiam do seu problema e agiam de modo compensatório. Isso é relacionamento pessoal: o velho e o seu problema pertenciam à comunidade. Em uma sociedade assim, salienta Von Franz, há menos criminosos e menos pessoas internadas em manicômios. A sociedade ampara o indivíduo e o suporta. A função sentimento, portanto, dá uma certa margem de liberdade, pois as pessoas são aceitas como são, e é justamente isso que estamos perdendo e que precisamos restaurar. 

Costumamos relacionar a função sentimento com afeto e emoção. No entanto, sentimento é algo diferenciado, é amar uma pessoa única, justamente porque ela é única. Isso é bem difícil, porque pressupõe que sejamos capazes de perceber a singularidade do outro, livre de julgamentos psicológicos esquemáticos. Em última análise, trata-se de algo irracional e que tem a ver com o nosso próprio desenvolvimento. Quanto mais nos tornamos um individuo único, quanto mais nos individuarmos no sentido junguiano do termo, mais seremos capazes de ver o outro como um ser único, sem juízos estereotipados. Se pararmos para observar como as pessoas costumam falar da vida alheia, veremos que muito do que é dito é apenas clichê, que não capta a singularidade do próximo e que não a define (o uso vulgar dos diagnósticos psiquiátricos ou posições políticas e ideológicas, por exemplo).

Liberar o coração significa nos tornarmos capazes de sentir e perceber o aspecto único da personalidade alheia e amar essa singularidade. Não se trata de um sentimentalismo meloso cristão, pronto a tudo perdoar, como Von Franz fala. Ao contrário, trata-se de uma grande precisão do sentimento: sentir a singularidade do outro e esperar que ele seja autêntico. Isso é a coisa mais importante: amar o que é genuíno e desgostar abertamente do que não é genuíno. Isso faz vir à tona o que o individuo realmente é, ou o que a natureza quer que ele seja. Isso é amor verdadeiro. Amor que cura e faz do outro uma pessoa inteira.

Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS


Ref.: BOA, Fraser, VON-FRANZ, Marie Louise. O Caminho dos Sonhos. São Paulo: Cultrix, 2007.