Enantiodromia é um termo extraído da filosofia de
Heráclito que significa a transformação de algo no seu oposto. A mesma mudança também
é expressa pelo provérbio de William Blake: “Excesso de pranto ri. Excesso de
riso chora”. Esse conceito foi reformulado por Carl Gustav Jung para ser
aplicado ao funcionamento dos processos energéticos da mente humana, quando existe
um conflito entre os interesses da mente consciente e inconsciente. A psique,
por meio da enantiodromia, nos mostra que alguns aspectos da vida estão sendo
excessivamente desenvolvidos ou valorizados, enquanto que outros, de igual
importância, estão sendo desprezados ou ignorados. Esse movimento tanto pode
ocorrer no âmbito da psique coletiva, quanto no da psique individual.
Para a psicologia junguiana, nosso estado
psicológico depende da forma como administramos e conduzimos o equilíbrio entre
os opostos: indivíduo e sociedade, masculino e feminino, consciente e
inconsciente, ego e sombra, extroversão e introversão, sofrimento e alegria, amor
e desejo de poder, matéria e psique, espirito e corpo, razão e emoção, entre tantos
outros. Quando assumimos uma atitude
unilateral ou quando o curso da nossa vida está seguindo uma única direção em
termos de valores e interesses, pode acontecer de se constelarem na consciência
os conteúdos que até então foram negligenciados. “Se a vida por algum motivo toma uma direção
unilateral, produz-se no inconsciente, por razão de autorregularão do
organismo, um acúmulo de todos aqueles fatores que na vida consciente não
tiveram voz, nem vez” (Carl Jung).
O inconsciente atua de modo compensatório em
relação à consciência, complementando-a com conteúdos que favoreçam o
equilíbrio. Esse movimento, inclusive, é o responsável pela formação dos
processos neuróticos e psicopatológicos, ou por sintomas psicossomáticos, gerando
doenças como uma última tentativa de integração. Certamente, essas
manifestações devem ser entendidas através de uma perspectiva holística/sistêmica,
e não linear. Ou seja, bem e mal, certo e errado, bom e ruim, sob a ótica
junguiana, são conceitos relativos e não absolutos. Como Jung diz, "o mal pode
ser necessário para produzir o bem, e o bem possivelmente pode levar ao mal". Tudo
vai depender da dinâmica psíquica de cada um ou de cada sociedade.
Nesse sentido, a atitude correta não é tentarmos acabar com os sintomas a todo custo, e sim tentarmos nos informar sobre o que
eles significam, o que eles nos ensinam, qual sua finalidade e sentido. Como
Jung diz, devemos ser gratos por eles, pois são a oportunidade que temos de
conhecer realmente quem somos. Os sintomas, de qualquer natureza, só terão fim quando tivermos liquidado nossas falsas atitudes. Portanto, na perspectiva
junguiana, são os sintomas que nos curam, e não o contrário. A doença é vista
como uma tentativa da natureza para nos curar. “Podemos aprender muita coisa da
doença para a nossa saúde, e aquilo que parece (...) absolutamente dispensável,
contém precisamente o verdadeiro ouro que não encontramos em outra parte” (Carl
Jung).
No âmbito da nossa cultura patriarcal, por exemplo,
há uma valorização excessiva de todas as características associadas ao
masculino – o Logos, a claridade, a razão, a consciência, a ordem, a objetividade, a lógica, a
competitividade, a atividade, a força, a realidade física e material – em
detrimento de tudo aquilo que está relacionado ao feminino - o Eros, o obscuro,
a intuição, o caos, a flexibilidade, a cooperação, a passividade, a fraqueza, o
instintivo e criativo, o mundo das emoções, dos mistérios, dos sonhos e do
inconsciente. Esse desequilíbrio tem se refletido em diversos conflitos da
nossa sociedade, na forma como lidamos com a natureza, com o corpo e as emoções,
com as mulheres, com o casamento e os relacionamentos, com a saúde e a
expressão mais íntima do nosso ser. A hipertrofia e desgaste da ordem patriarcal
vigente fez surgir, por enantiodromia, um verdadeiro caos que, por sua vez, tem
nos levado a um trabalho ativo e consciente na construção de uma nova ordem com mais harmonia entre esses aspectos.
Portanto, a vida requer equilíbrio. Ignorarmos esse
fato é vivermos de forma alienada, o que levará inevitavelmente a nos
sujeitarmos às intervenções do inconsciente, não deixando dúvidas de que a nossa
vida está sendo indevidamente conduzida. A única pessoa que escapa da lei
implacável da enantiodromia é aquela que sabe separar-se do inconsciente sem
reprimi-lo, mas colocando-se claramente diante dele como aquilo que ele
realmente é: uma instância reguladora, complementar, e que abriga tudo aquilo
que ainda não sabemos sobre nós mesmos.
Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga – CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS
Ref.: CAVALCANTI, Raissa. O Casamento do Sol com a
Lua. São Paulo: Círculo do Livro, 1992. JUNG, Carl Gustav. Civilização em
Transição. Obras Completas, vol. 10/3 .Petrópolis: Vozes, 2011. JUNG, Carl
Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Obras Completas, vol. 9/1 .
Petrópolis: Vozes, 2011. YABUSCHITA. Fabio Massao. The Dark Side of the Moon, a
obra-prima do Pink Floyd segundo a Psicologia Junguiana. São Paulo: Dracena,
2012.