sábado, 26 de março de 2016

O Diabo é pai do Rock




O Diabo é pai do Rock! Já cantava aos quatro ventos nosso querido Raul Seixas. Afinal, o Diabo é uma figura arquetípica importante e não poderia deixar de ter seu espaço também no âmbito musical. Dizem que caiu do céu ou foi despedido e, como odiava Adão, ficou tentando Eva até que conseguiu arruinar aquele arrumadinho e chato Paraíso. A tentação era - e continua a ser - a sua especialidade.

Sua estranha aparência nos lembra Pan, personagem da mitologia grega, chamado de o Grande Todo. Pan era tão feio ao nascer – o corpo coberto de pêlos, metade homem, metade bode, chifres, barba e cauda – que sua mãe fugiu para bem longe, rejeitando e abandonando o filho logo ao nascer. Pan personifica a natureza livre e indomada, as necessidades instintivas do corpo, a sexualidade e a agressividade. Era um deus alegre, amante da boa música e da dança. Morava em cavernas e vagava pelas profundezas escuras das florestas, representando todos aqueles conteúdos que habitam a nossa sombra, aquilo que aprendemos a reprimir e que, portanto, desconhecemos. Aqueles aspectos de nós mesmos que negamos ou fugimos apavorados, exatamente como a mãe de Pan fez.

Pan


Todas essas características, é claro, vão na contramão da doutrina ensinada pelas principais religiões. Durante muito tempo, para o Cristianismo, o riso, o prazer, o divertimento, ou a nossa parte animal representada pelos instintos, foram relacionadas ao mal, ao Diabo, a Pan. A vida na terra deveria ser um vale de lágrimas e sofrimento, a fim de que se pudesse alcançar o céu eterno. Tudo o que fosse diferente e que não se enquadrasse nesses parâmetros divinos era visto com desconfiança, como coisas do “chifrudo”.

O Rock, por sua vez, teve suas origens na música negra, no blues. Nasceu nos Estados Unidos no contexto pós-guerra, numa época em que a sociedade americana começava a abandonar seus preconceitos mais arraigados. O nome desse novo estilo musical surgiu da expressão rock’n’roll, usada em letras de música como sinônimo ou gíria para “dançar” ou “fazer amor”. Nutriu e ainda nutre estreitos vínculos com a rebeldia, pois surgiu como uma forma de contestação à ordem vigente, provocando um verdadeiro choque entre gerações. A associação com o “cover de Deus” foi imediata: o Diabo é o pai do Rock!

O Rock cresceu, se desenvolveu e amadureceu. Tornou-se símbolo de um estado de espírito e jeito de ser. Continuou e continua “fazendo a cabeça” de muita gente e chacoalhando a sociedade. “Rock é atitude!”, como se diz e, sendo assim, sempre teve um papel muito importante e, porque não, curador.

Sinceramente, nós precisamos ser muito gratos ao Diabo por ele ter criado o rock. Ele nos fez lembrar de viver a vida de forma mais espontânea, mais solta, livre e original. O Diabo, através da sua música, nos fez lembrar que também somos como ele, que também somos Pan - a totalidade. Nós não somos apenas luz, mas também sombra; não somos apenas espírito, mas também instinto. E não somos apenas mente, mas também corpo.


O Diabo, o pai do rock, nos fez um convite a ouvir a sua música e a celebrar o nosso corpo, respeitando suas necessidades e seus desejos. Sem medo e sem vergonha. Na função de pai e “velho sábio” nos questiona: “Quando você parou de dançar e cantar? Quando você parou de se alegrar e sentir prazer? Quando você parou de sonhar e amar?”. E ele mesmo responde: “a solução pode ser o Rock, baby!”, já pegando a sua guitarra. 



Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831

Atende em Porto Alegre/RS





Do céu ao inferno: é o Rock and Roll!!!







Fontes: CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT. Alain. Dicionário de Símbolos. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001. NICHOLS, Sallie. Jung e o Tarô, uma jornada arquetípica.  São Paulo: Cultrix, 1997. OLIVEIRA, Claudinei José de Oliveira. O Diabo é o pai do Rock. Disponível em http://whiplash.net/materias/biografias/221676-satanismo.html .SHARMAN-BURKE, Juliet & GREENE, Liz. O Tarô Mitológico. São Paulo: Arx/Siciliano, 2003. 

domingo, 20 de março de 2016

“Aquilo a que você resiste, persiste” - O Mito de Édipo


Édipo e a Esfinge

Essa é uma conhecida frase de Carl Gustav Jung que circula bastante pelas redes sociais. Mas o que ela quer dizer exatamente? Acredito que a melhor maneira de entendermos o seu significado é através do Mito de Édipo, um dos mais famosos da antiga Grécia.
Édipo, que não sabia ter sido criado por pais adotivos, consultou o oráculo de Delfos, que lhe previu estar destinado a matar o pai e a casar-se com sua mãe. A fim de evitar a tragédia, ele resolve fugir. Durante a fuga, envolve-se em uma briga na estrada, e sem saber, mata Laio, o seu verdadeiro pai. Mais tarde, em Tebas, Édipo se defronta com a Esfinge que vinha devastando a região, e resolve o enigma que ela propôs, salvando as pessoas dessa terrível ameaça. Como recompensa pela sua astúcia e inteligência, torna-se rei e se casa com a Rainha Jocasta, viúva de Laio e sua verdadeira mãe. Quando descobre a verdade, Édipo lamenta o ocorrido e arranca seus próprios olhos e, por fim, atira-se em uma fenda que se abre na terra, consumando-se assim sua tragédia.
O Mito de Édipo se tornou famoso pela importância que lhe foi atribuída por Freud no séc.XIX e na formulação teórica do complexo que recebe o mesmo nome – o Complexo de Édipo. De acordo com a visão freudiana, o mito mostra o conjunto de desejos amorosos e hostis que uma criança experimenta em relação aos seus pais e que desempenham um papel fundamental na estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano. Mas não vou me deter aos detalhes da teoria freudiana, até por que meu objetivo aqui é falar do Mito de Édipo a partir de uma perspectiva diferente.
Do ponto de vista da Psicologia Junguiana, o Mito de Édipo adquire outros contornos. E dele podemos tirar uma importante lição, talvez ainda mais significativa que a freudiana e que nos remete ao nosso racionalismo e materialismo.
No transcorrer da história humana, o homem tem feito tentativas heróicas no sentido de se libertar dos domínios de sua natureza animal. Em função disso, passou a supervalorizar alguns aspectos da vida, como a razão, a consciência e a objetividade, em detrimento de outros, considerados inferiores, como as paixões e as emoções.
Porém, como diria Jung, a vida, assim como a Esfinge, tem seus mistérios. Decifra-los não é apenas tarefa da razão, como bem pretendeu Édipo. Precisamos compreender que não cabe apenas ao intelecto extrair o significado da vida, mas há outros fatores que não se explicam lógica e racionalmente e que compõem o nosso lado mais irracional, instintivo e criativo.
Vivermos nossa vida unicamente centrada nos valores da razão e nas preocupações do nosso ego limita a expressão de toda riqueza e potencial que trazemos dentro de nós. Nos aliena dos significados vivos que brotam da nossa natureza mais inconsciente e nos faz viver uma vida estéril, rígida, unilateral e sem um sentido, ou significado simbólico mais profundo. O destino fatídico de Édipo.
A vida simbólica, a sensibilidade e receptividade ao irracional, intuitivo e imaginativo da vida é necessária para o nosso desenvolvimento e equilíbrio psicológicos. Se Édipo tivesse considerado a profecia do Oráculo simbolicamente em vez de considera-la ao “pé da letra”, e se tivesse olhado pra dentro de si mesmo em vez de mudar sua geografia externa, poderia ter evitado o seu destino cruel, tanto no nível literal quanto no simbólico.  Poderia, por exemplo, ter encarado o fato de “matar o pai” como uma advertência para controlar melhor suas ações impulsivas, seu temperamento, seu orgulho e arrogância juvenil diante de tudo e de todos. Poderia ter explorado sua tendência para “casar com a mãe”, como um símbolo de sua necessidade regressiva de buscar superproteção, permanecendo infantil e imaturo. Diante destas horríveis premonições, um Édipo moderno poderia ter procurado ajuda profissional, evitando essas atrocidades.
Às vezes temos a impressão de que a vida nos trapaceia e nos faz passar por papéis ridículos. Mas não é a vida (ou a Esfinge) que nos enganou, mas as nossas próprias ilusões, criadas pelo nosso pensamento, que nos fazem acreditar que a vida é uma sucessão de fatos em ordem crescente de hierarquia que nos levarão um dia à perfeição dos deuses ou à felicidade plena.  Porém, como disse Jung, nós não viemos ao mundo para sermos felizes, perfeitos ou bons, mas para ampliarmos nossa consciência.
No entanto, precisamos encarar o fato de que não há despertar de consciência sem dor. O sofrimento é parte fundamental da vida e condição indispensável para o nosso amadurecimento. Sem ele permaneceríamos inconscientes, infantis e dependentes. Se não formos capazes de contemplar o sofrimento e de entender sua finalidade, permaneceremos para sempre fugindo, ou negando, ou assumindo o papel de vítimas, como Édipo fez.
Se pararmos para olhar o caminho trilhado por Édipo, fugindo do seu destino e reencontrando-o novamente para dolorosamente cumpri-lo, veremos que ele acaba por dar uma volta completa num círculo, chegando ao ponto exato de onde partiu. Édipo nos ensina que quanto mais tentamos fugir, quanto mais evitamos de encarar as nossas emoções e as tarefas que precisamos cumprir nesta vida, mais próximos estamos de nos encontrar com elas, e da pior forma. Como nos alertou Jung na sua famosa frase: “tudo aquilo a que você resiste, persiste”.

Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831

Atende em Porto Alegre/RS



Referências: CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT. Alain. Dicionário de Símbolos. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001. JUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Vol.V. Obras Completas. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2008. NICHOLS, Sallie. Jung e o Tarô, uma jornada arquetípica.  São Paulo: Cultrix, 1997. YABUSCHITA, F. Massao. The Dark Side of The Moon, a obra prima do Pink Floyd segundo a Psicologia Junguiana. Içara/SC: Editora Dracaena, 2012.



segunda-feira, 14 de março de 2016

O que os mitos têm a nos dizer.


O Nascimento de Vênus de Sandro Botticelli (1484–1486)


Os artistas e escritores da Renascença foram os principais responsáveis pelo resgate dos valores artísticos, filosóficos, científicos e culturais dos antigos gregos e romanos. Essa atitude contribuiu muito para a formação cultural do Ocidente. Os deuses gregos antecederam e influenciaram quase todos os símbolos religiosos da cultura judaico-cristã, assim como a arte e a literatura. Não há quem não tenha viva em sua memória, por exemplo, a imagem do Nascimento de Vênus de Botticelli, ou de outras obras importantes deste período.

Hoje, os deuses gregos ainda permanecem como a imagem que melhor representa e descreve a natureza humana, a natureza de nossa psique, com todos os seus impulsos ambivalentes e contraditórios. No entanto, esse conhecimento apenas recentemente começou a ser estudado por meio da psicologia moderna, que retorna aos antigos mitos e aos deuses pagãos para compreender o comportamento humano.

Mas, o que é mito, na verdade? Se formos olhar no dicionário, encontraremos várias definições para a palavra mito. Uma delas nos diz que o mito é uma estória não verdadeira. De fato, nós sabemos que até hoje ninguém encontrou os restos mortais de nenhum deus grego, como Hércules ou Édipo, por exemplo. Mas aquilo que não é real em termos concretos pode ser absolutamente verdadeiro no nível emocional, psicológico ou subjetivo.

O homem antigo dava sentido ao mundo através dos mitos. Armstrong em seu livro Breve História do Mito nos diz que essas estórias ajudavam as pessoas a encontrar sentido em suas vidas, além de revelar regiões da mente humana que de outro modo permaneceriam inacessíveis. Sendo assim, eles faziam uma ponte ou uma mediação entre a vida consciente e inconsciente. Era como se fosse uma forma inicial de psicologia.


“As histórias de deuses e heróis que descem às profundezas da terra, lutando contra monstros e atravessando labirintos, trouxeram à luz os mecanismos misteriosos da psique, mostrando as pessoas como lidar com as crises íntimas”, conta ele.

Então, quando Freud e Jung iniciaram a moderna investigação da alma, voltaram-se instintivamente para a mitologia clássica para explicar suas teorias, dando uma nova interpretação a estes velhos mitos.

As imagens míticas são na realidade representações espontâneas, fruto da imaginação do homem, que descreve em linguagem poética, metafórica ou simbólica suas experiências fundamentais e os padrões do seu desenvolvimento. Jung usou a palavra arquétipo para descrever esses padrões, que são universais e existem em todas as pessoas de todas as civilizações e culturas, em todos os períodos da História.

O nascimento, por exemplo, é uma experiência arquetípica. No plano concreto isto é obvio, pois todos viemos ao mundo em algum momento. Porém, o nascimento também é uma experiência psicológica, pois toda vez que começamos algo novo, ou entramos numa nova fase da vida, existe o sentido do nascimento. Essa experiência implica em determinados estados subjetivos, pois nascer significa abrir mão do conforto do útero materno, tanto em um nível físico como psicológico. E, então, nesse momento, nos encontramos com Dioniso, o deus misterioso chamado de O Que Nasceu Duas Vezes.

A morte também é uma experiência arquetípica, pois com certeza todos iremos morrer algum dia. No entanto, a morte também é psicológica, pois a nossa natureza e a natureza da própria vida é a impermanência. Cada vez que terminamos alguma coisa ou que alguma coisa importante em nossa vida se encerra, existe o sentido da morte. Então, nesse momento nos deparamos com o sombrio deus Hades, o senhor das Trevas.

A puberdade, outro exemplo, também é arquetípica. Todos nós passamos pelas profundas transformações físicas e emocionais dessa fase da vida. Mas nós ainda podemos fazer essa mesma passagem, em um nível interno e subjetivo, várias vezes durante toda a vida, cada vez que mudamos de um ponto infantil e inocente para uma postura mais desafiadora e madura com relação à vida. E então, nesse momento, nos colocamos diante de Perséfone, filha da Mãe Terra Deméter, e do mito que conta a história de seu rapto pelo deus Hades.

E assim, eu poderia citar diversas outras situações a que todo ser humano se depara ao longo de sua vida, como o casamento, a gravidez, o envelhecimento, etc. Experiências e situações comuns a todos nós e que são decorrentes da nossa condição humana.

Apesar de sermos os atores singulares de nossa própria história, trazemos uma herança dentro de nós. Os mitos nos recordam essa herança, nos lembram que outras pessoas já passaram pelo mesmo caminho que estamos trilhando e que nos deixaram algumas pistas de como poderemos continuar. Isso não irá nos eximir do sofrimento e da dificuldade, mas nos dará um sentido, uma forma de enfrentar e suportar estes mesmos conflitos.

Sendo assim, todo mito é de alguma forma uma tomada de consciência sobre nós mesmos, sobre nossa condição humana e sobre o nosso processo de vida. Os mitos nos permitem olhar a vida com toda sua riqueza de experiências através de outra perspectiva, pois sua função primeira é nos ensinar. Os mitos surgem como uma forma de expressar aquilo que desconhecemos em nós mesmos: a nossa realidade arquetípica fundamental.

Como nos diz Joseph Campbell, mitólogo que tem mais de 20 obras publicadas sobre a importância dos mitos para a humanidade:

“A mitologia é a canção do universo – música que nós dançamos mesmo quando não somos capazes de reconhecer a melodia”.



Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS





Fontes: Armstrong, K. Breve História do Mito. São Paulo: Cia das Letras, 2005. CAMPBELL, Joseph & MOYERS, Bill. O poder do mito. 1990. SHARMAN-BURKE, Juliet & GREENE, Liz. O Tarô Mitológico. São Paulo: Arx/Siciliano, 2003. ULSON, Glauco - O método Junguiano. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1995.