segunda-feira, 14 de março de 2016

O que os mitos têm a nos dizer.


O Nascimento de Vênus de Sandro Botticelli (1484–1486)


Os artistas e escritores da Renascença foram os principais responsáveis pelo resgate dos valores artísticos, filosóficos, científicos e culturais dos antigos gregos e romanos. Essa atitude contribuiu muito para a formação cultural do Ocidente. Os deuses gregos antecederam e influenciaram quase todos os símbolos religiosos da cultura judaico-cristã, assim como a arte e a literatura. Não há quem não tenha viva em sua memória, por exemplo, a imagem do Nascimento de Vênus de Botticelli, ou de outras obras importantes deste período.

Hoje, os deuses gregos ainda permanecem como a imagem que melhor representa e descreve a natureza humana, a natureza de nossa psique, com todos os seus impulsos ambivalentes e contraditórios. No entanto, esse conhecimento apenas recentemente começou a ser estudado por meio da psicologia moderna, que retorna aos antigos mitos e aos deuses pagãos para compreender o comportamento humano.

Mas, o que é mito, na verdade? Se formos olhar no dicionário, encontraremos várias definições para a palavra mito. Uma delas nos diz que o mito é uma estória não verdadeira. De fato, nós sabemos que até hoje ninguém encontrou os restos mortais de nenhum deus grego, como Hércules ou Édipo, por exemplo. Mas aquilo que não é real em termos concretos pode ser absolutamente verdadeiro no nível emocional, psicológico ou subjetivo.

O homem antigo dava sentido ao mundo através dos mitos. Armstrong em seu livro Breve História do Mito nos diz que essas estórias ajudavam as pessoas a encontrar sentido em suas vidas, além de revelar regiões da mente humana que de outro modo permaneceriam inacessíveis. Sendo assim, eles faziam uma ponte ou uma mediação entre a vida consciente e inconsciente. Era como se fosse uma forma inicial de psicologia.


“As histórias de deuses e heróis que descem às profundezas da terra, lutando contra monstros e atravessando labirintos, trouxeram à luz os mecanismos misteriosos da psique, mostrando as pessoas como lidar com as crises íntimas”, conta ele.

Então, quando Freud e Jung iniciaram a moderna investigação da alma, voltaram-se instintivamente para a mitologia clássica para explicar suas teorias, dando uma nova interpretação a estes velhos mitos.

As imagens míticas são na realidade representações espontâneas, fruto da imaginação do homem, que descreve em linguagem poética, metafórica ou simbólica suas experiências fundamentais e os padrões do seu desenvolvimento. Jung usou a palavra arquétipo para descrever esses padrões, que são universais e existem em todas as pessoas de todas as civilizações e culturas, em todos os períodos da História.

O nascimento, por exemplo, é uma experiência arquetípica. No plano concreto isto é obvio, pois todos viemos ao mundo em algum momento. Porém, o nascimento também é uma experiência psicológica, pois toda vez que começamos algo novo, ou entramos numa nova fase da vida, existe o sentido do nascimento. Essa experiência implica em determinados estados subjetivos, pois nascer significa abrir mão do conforto do útero materno, tanto em um nível físico como psicológico. E, então, nesse momento, nos encontramos com Dioniso, o deus misterioso chamado de O Que Nasceu Duas Vezes.

A morte também é uma experiência arquetípica, pois com certeza todos iremos morrer algum dia. No entanto, a morte também é psicológica, pois a nossa natureza e a natureza da própria vida é a impermanência. Cada vez que terminamos alguma coisa ou que alguma coisa importante em nossa vida se encerra, existe o sentido da morte. Então, nesse momento nos deparamos com o sombrio deus Hades, o senhor das Trevas.

A puberdade, outro exemplo, também é arquetípica. Todos nós passamos pelas profundas transformações físicas e emocionais dessa fase da vida. Mas nós ainda podemos fazer essa mesma passagem, em um nível interno e subjetivo, várias vezes durante toda a vida, cada vez que mudamos de um ponto infantil e inocente para uma postura mais desafiadora e madura com relação à vida. E então, nesse momento, nos colocamos diante de Perséfone, filha da Mãe Terra Deméter, e do mito que conta a história de seu rapto pelo deus Hades.

E assim, eu poderia citar diversas outras situações a que todo ser humano se depara ao longo de sua vida, como o casamento, a gravidez, o envelhecimento, etc. Experiências e situações comuns a todos nós e que são decorrentes da nossa condição humana.

Apesar de sermos os atores singulares de nossa própria história, trazemos uma herança dentro de nós. Os mitos nos recordam essa herança, nos lembram que outras pessoas já passaram pelo mesmo caminho que estamos trilhando e que nos deixaram algumas pistas de como poderemos continuar. Isso não irá nos eximir do sofrimento e da dificuldade, mas nos dará um sentido, uma forma de enfrentar e suportar estes mesmos conflitos.

Sendo assim, todo mito é de alguma forma uma tomada de consciência sobre nós mesmos, sobre nossa condição humana e sobre o nosso processo de vida. Os mitos nos permitem olhar a vida com toda sua riqueza de experiências através de outra perspectiva, pois sua função primeira é nos ensinar. Os mitos surgem como uma forma de expressar aquilo que desconhecemos em nós mesmos: a nossa realidade arquetípica fundamental.

Como nos diz Joseph Campbell, mitólogo que tem mais de 20 obras publicadas sobre a importância dos mitos para a humanidade:

“A mitologia é a canção do universo – música que nós dançamos mesmo quando não somos capazes de reconhecer a melodia”.



Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS





Fontes: Armstrong, K. Breve História do Mito. São Paulo: Cia das Letras, 2005. CAMPBELL, Joseph & MOYERS, Bill. O poder do mito. 1990. SHARMAN-BURKE, Juliet & GREENE, Liz. O Tarô Mitológico. São Paulo: Arx/Siciliano, 2003. ULSON, Glauco - O método Junguiano. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1995.

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