domingo, 10 de abril de 2016

A Perda e a Traição.




Nenhuma experiência se repete mais na nossa vida do que a perda. Na verdade, nossa vida começa com a perda. Somos separados da proteção do útero materno e lançados em um mundo incerto e amedrontador. Depois, perderemos a segurança, a inocência, os amigos e os amores, as energias físicas do nosso corpo e as várias identificações que fizemos ao longo do caminho.

A perda é uma condição tão central na nossa vida, que não há uma só cultura que não possua uma mitologia que dramatize essa sensação de desconexão. Os mitos de queda e expulsão do paraíso são um bom exemplo disso.

Precisamos compreender que a vida é uma permanente experiência de sofrimento. Esse sofrimento é basicamente causado pelo nosso desejo de controle. Queremos controlar o ambiente, controlar os outros e controlar até mesmo a morte. Como não conseguimos controlar tudo completamente, nosso sofrimento vai sendo diretamente proporcional às nossas perdas.

Sendo assim, o único caminho para transformarmos o sofrimento e irmos além dele é renunciarmos ao desejo de controlar. Precisamos nos entregar e acompanhar a sabedoria que está contida na “qualidade transitória da natureza”. O ato de renúncia não vai nos transformar em vítimas da perda, mas sim em participantes ativos da entrega.

É fundamental reconhecermos que a única coisa permanente na vida é sua própria impermanência. Tudo está em constante mudança, nada é ou está parado, tudo gira, corre, anda, move-se, nasce, cresce e morre. E cada fim é seguido de um novo começo, em um eterno vir-a-ser. Não apenas os aspectos materiais estão em transmutação, mas também os emocionais, espirituais, filosóficos, culturais e até econômicos. Deixar de mudar é contrário à vida, é a morte!

Por outro lado, a experiência da perda só pode ser intensa quando algo de valor esteve na nossa vida. Se não houve a sensação de perda é porque não houve nada de valor. Sendo assim, a tarefa implícita nesse sofrimento é enxergar esse valor e segura-lo dentro de nós, tornando consciente a contribuição dessa pessoa, situação ou experiência em nossa vida, mesmo que não possamos segura-la concretamente. Isso não é uma negação da perda, ao contrário, é uma transformação, pois tudo aquilo que é internalizado dentro de nós, jamais é completamente perdido.

A traição, por sua vez, é uma outra forma de perda. O que perdemos é a inocência e a confiança no relacionamento. No entanto, estar em um relacionamento e confiar nele significa também pressupor a capacidade de sermos traídos. Se não confiamos, não nos aprofundamos; e sem profundidade, não existe a verdadeira traição.  Sendo assim, o paradoxo da confiança e da traição é que uma pressupõe a outra.

A traição é uma das coisas mais difíceis de serem perdoadas. Porém, a capacidade de perdoar é também o reconhecimento da nossa capacidade de errar, da nossa capacidade de trair e a única atitude que pode nos libertar do passado. Um considerável crescimento torna-se possível a partir de então. Podemos aprender com nossas dores, mas se não o fizermos, nós a repetiremos em outro momento ou nos identificaremos com elas. Ficaremos presos ao passado, identificados com a traição.

A vingança nos coloca no papel de eternas vítimas e nos faz perder todas as oportunidades de vida que podem ser nossas a partir de então. Negar a dor da traição é recusar-se ao crescimento que esse sofrimento implica. Por outro lado, generalizar a experiência, uma outra tentação da pessoa traída, vai nos transformar em paranóicos que fogem o tempo todo da intimidade dos relacionamentos.

Se lidarmos adequadamente com a traição, ela nos levará à expansão da nossa consciência. Por mais difícil que seja, seremos intimados a reconhecer o quanto fomos ingênuos, dependentes e o quanto fomos coniventes com todos os fatores que levaram à traição e à dor que estamos sentindo no momento.

A mensagem que nos chega através da dor da perda e da traição é que não podemos nos agarrar a nada, não podemos ter ninguém ou nada como certo e garantido. Não é possível evitar a dor. Mas o que fica, o que é permanente em meio a impermanência da vida, é o convite à consciência. O que se mantém sob o nosso controle é a atitude de estarmos dispostos a descobrir até nas mais amargas experiências o que permanece dentro de nós para ser vivido.



Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831

Atende em Porto Alegre/RS





Fonte: James Hollis. Os Pantanais da Alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus, 2001. 

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Culpa e Libertação


O Remorso de Orestes de William-Adolphe Bouguereau - 1862. 


A culpa é um dos sentimentos mais básicos e também um dos mais tenebrosos que podemos sentir. Ela não passa simplesmente de um momento para o outro, como a alegria e a raiva, por exemplo. Ela é um sentimento que nos consome lentamente e nos martiriza, por não conseguirmos encontrar uma desculpa ética e moralmente aceitável para deixá-la de lado e continuarmos nossa vida normalmente.

A culpa nos paralisa. Sentir-se culpado significa que fizemos algo considerado terrível para nós ou para alguém, nos aprisionado ao passado e contaminando o presente com vários outros sentimentos e atitudes decorrentes, como medo, raiva, angústia, tormento, auto-sacrifício e autopunição.

Podemos encontrar esse sentimento muito bem representado pelo  mito de Orestes. A história de Orestes e A Maldição da Casa de Atreu é uma das mais longas e fortes passagens da mitologia grega. Orestes era filho de Agamenon e Clitemnestra, rei e rainha de Argos. Ao voltar da guerra de Tróia, Agamenon é assassinado pela sua mulher e por Egisto, seu amante. Para que não houvesse nenhuma interferência de seus planos, Clitemnestra envia Orestes para a Fócida, a fim de que ele não soubesse do crime, ou tentasse impedi-la ou mesmo vingar a morte do pai.

Porém, o deus Apolo aparece para Orestes na Fócida e disse-lhe que deveria vingar a morte do pai. Orestes protestou horrorizado, pois aquilo significava ter que matar a própria mãe. Mas, diante das ameaças terríveis de Apolo, o jovem príncipe acabou aceitando seu destino e empreendeu sua viagem de volta a Argos. Chegando lá, matou Egisto e sua mãe com a ajuda de sua irmã, Electra. Tendo obedecido as ordens de Apolo, julgou estar livre, mas imediatamente passou a ser atormentado e perseguido pelas Fúrias - seres horríveis com caras de cobra e asas de morcego – que acabaram por deixar Orestes louco, com pesadelos medonhos e visões tenebrosas. Cansado e desesperado, Orestes procura Atena, a deusa da justiça, que interfere a favor dele fazendo as pazes com as Fúrias e libertando-o da antiga maldição.

Nessa narrativa, a culpa está representada pelas Fúrias que passam a perseguir e atormentar Orestes em função das escolhas e decisões que ele fez no passado. Como nos mostra o mito, a saída para esse sentimento é o vislumbre, ou insight, fruto de uma reflexão imparcial e mais profunda, representada por Atena, a deusa da justiça.

Na maioria das vezes, a culpa surge em função da frustração dos ideais de perfeição que todos carregamos dentro de nós, fruto da nossa educação, ou dos valores morais e éticos aos quais estamos inseridos. Nesse sentido, precisamos entender que a culpa está associada a uma visão. Toda e qualquer atividade criativa pressupõe a transgressão em relação àquilo que é considerado como certo, normal ou aceitável. O que muitas vezes são conceitos relativos e não absolutos. Tudo aquilo que não serve mais, que nos aprisiona e que nos mantém infantilizados e acomodados deve ser transgredido.

Por outro lado, a culpa também nos mostra que somos tão falíveis como qualquer outro ser humano. Ela nos ajuda a ser mais humildes e a ter mais consciência dos nossos atos. Quando ampliamos nossa consciência sobre as coisas e sobre nós mesmos, quando encaramos nossos problemas de frente, com a clareza e honestidade de Atena, mudamos de direção, buscamos novos caminhos, novas formas de agir. Amadurecemos.

Além do mais, nenhuma pessoa consciente neste mundo pode se dizer inocente, seja no nível pessoal como no coletivo. Assim como aconteceu com Orestes no mito, muitas vezes somos colocados diante de forças opostas e destrutivas. E cabe a nós fazer escolhas, através das quais outros podem vir a sofrer. Sendo assim, é parte indispensável do nosso desenvolvimento a aceitação da responsabilidade pelas conseqüências de nossas escolhas, por mais inconscientes que elas tenham sido na ocasião.

A culpa é um sentimento que nos faz sofrer, mas não devemos nos tornar infelizes por causa dela, e sim mais conscientes. Nós só entendemos quem somos de verdade através do sofrimento. Portanto, se estiver se sentindo culpado, não viva atormentado como Orestes, nem rebaixe a si mesmo ou se puna. Lamente, mas tenha compaixão por si mesmo. Procure lembrar de suas qualidades positivas e transforme a experiência em aprendizado. Esse é o início da sabedoria e o único caminho que pode nos conduzir a libertação!



Por Melissa Samrsla Brendler
CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS




Fontes: CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT. Alain. Dicionário de Símbolos. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001. HOLLIS, James. Os Pantanais da Alma: nova vida em lugares sombrios. Coleção Amor & Psique. São Paulo: Paulus,1999. Mourão. Hellen Reis. Ensaio sobre Culpa. Café com Jung (cafecomjung.blogspot.com.br). SHARMAN-BURKE, Juliet & GREENE, Liz. O Tarô Mitológico. São Paulo: Arx/Siciliano, 2003.