quinta-feira, 9 de agosto de 2018

LIBERANDO O CORAÇÃO: o florescer do sentimento





Segundo Marie Louise Von-Franz, psicóloga e importante continuadora do trabalho de Carl Gustav Jung, o problema número um de nossa época é o fato de estarmos erigindo um muro de racionalidade em nossa sociedade, impenetrável ao sentimento. Como consequência, estamos perdendo a capacidade de amar e sermos amados. A única coisa que poderia nos salvar de cairmos numa sociedade de massas super-racional, superorganizada e que sufoca e anula o individuo, de acordo com ela, seria uma reavaliação dos sentimentos pessoais. E, felizmente, muita gente está acordando para isso.

A massificação da sociedade advém da super população do planeta, a qual exige uma ampla organização que sufoca o indivíduo. Há regras, parâmetros e estatísticas demais, e tudo isso é sempre muito impessoal: eles se aplicam a todos. Por outro lado, se formos estudar ou visitar uma tribo primitiva ou uma comunidade agrícola veremos que isso não acontece. Nelas todos se conhecem, e cada um se relaciona pessoalmente com o outro. Os portadores de distúrbios mentais, por exemplo, não costumam ser afastados ou recolhidos em instituições. A sociedade simplesmente os tolera.

Nesse sentido, Von Franz lembra de uma situação que ocorreu quando voltou ao vilarejo onde cresceu. Um homem chegou à ela e disse que seu pai era cleptomaníaco e que se algo fosse roubado era favor não chamarem a polícia, mas avisa-lo que ele devolveria tudo. Assim, o pobre velho não precisava ser internado. Todos sabiam do seu problema e agiam de modo compensatório. Isso é relacionamento pessoal: o velho e o seu problema pertenciam à comunidade. Em uma sociedade assim, salienta Von Franz, há menos criminosos e menos pessoas internadas em manicômios. A sociedade ampara o indivíduo e o suporta. A função sentimento, portanto, dá uma certa margem de liberdade, pois as pessoas são aceitas como são, e é justamente isso que estamos perdendo e que precisamos restaurar. 

Costumamos relacionar a função sentimento com afeto e emoção. No entanto, sentimento é algo diferenciado, é amar uma pessoa única, justamente porque ela é única. Isso é bem difícil, porque pressupõe que sejamos capazes de perceber a singularidade do outro, livre de julgamentos psicológicos esquemáticos. Em última análise, trata-se de algo irracional e que tem a ver com o nosso próprio desenvolvimento. Quanto mais nos tornamos um individuo único, quanto mais nos individuarmos no sentido junguiano do termo, mais seremos capazes de ver o outro como um ser único, sem juízos estereotipados. Se pararmos para observar como as pessoas costumam falar da vida alheia, veremos que muito do que é dito é apenas clichê, que não capta a singularidade do próximo e que não a define (o uso vulgar dos diagnósticos psiquiátricos ou posições políticas e ideológicas, por exemplo).

Liberar o coração significa nos tornarmos capazes de sentir e perceber o aspecto único da personalidade alheia e amar essa singularidade. Não se trata de um sentimentalismo meloso cristão, pronto a tudo perdoar, como Von Franz fala. Ao contrário, trata-se de uma grande precisão do sentimento: sentir a singularidade do outro e esperar que ele seja autêntico. Isso é a coisa mais importante: amar o que é genuíno e desgostar abertamente do que não é genuíno. Isso faz vir à tona o que o individuo realmente é, ou o que a natureza quer que ele seja. Isso é amor verdadeiro. Amor que cura e faz do outro uma pessoa inteira.

Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS


Ref.: BOA, Fraser, VON-FRANZ, Marie Louise. O Caminho dos Sonhos. São Paulo: Cultrix, 2007.

2 comentários:

  1. Foi este que eu não tinha lido. Acho muito pertinente. Isto é o mesmo que se passa na Europa. Fiquei muito esclarecido. Obrigado

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