Nossa
cultura é faltante. Falta maturidade, integridade, realidade. O tempo acaba,
mas a maioria de nós não percebe que, quando olha o relógio repetidas vezes
esperando o fim do dia está, na verdade, torcendo para que o tempo passe e a morte se aproxime.
O
que separa o nascimento da morte é o tempo. Vida é o que fazemos dentro desse
tempo, é a nossa experiência. Quando passamos a vida esperando pelo fim do dia,
pelo fim de semana, pelas férias, pelo fim do ano, pela aposentadoria, estamos
torcendo para que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido. Dizemos que
depois do trabalho vamos viver, mas esquecemos que a opção vida não é um botão
on/off que desligamos conforme o clima ou
o prazer de viver. Com ou sem prazer, estamos vivos 1OO% do tempo. O tempo
corre em ritmo constante. Vida acontece todo o dia, e poucas vezes parecemos
nos dar conta disso.
Enquanto
desperdiçarmos tempo aceitando ilusões sobre o que é a vida, não podemos chegar
à essência dela. Falta verdade sobre o nascer e o viver, e passamos a vida toda
sob a falta de verdade sobre o que é morrer. Todo mundo morre, mas nem todo
mundo um dia vai poder saber por que viveu.
O
problema é que pensamos que somos eternos. Por causa dessa ilusão, vivemos
nossas vidas de modo irresponsável, sem compromisso com o bom, o belo e o
verdadeiro, distanciados da própria essência. Não gostamos de falar ou pensar
sobre a morte. Somos como crianças brincando de esconde-esconde numa sala sem
móveis. Tapamos os olhos com as mãos e achamos que ninguém nos vê. Acreditamos
de forma ingênua que se não pensarmos na morte, é como se ela não existisse. E
é justamente essa ingenuidade que praticamos o tempo todo com a nossa própria
vida. Pensamos que, se não olharmos para o lixo de relação afetiva, o lixo de
trabalho, o lixo de vida que preservamos a qualquer preço, será como se o lixo
não existisse. Mas o lixo se faz presente. Cheira mal, traz desconforto e traz
doenças.
Assim, vivemos como mortos-vivos: mortos para as relações de amizades, mortos
para o encontro amoroso, mortos para a família e mortos para a relação com o
sagrado em nossas vidas. Viver como mortos-vivos faz com que não consigamos
viver de forma genuína. Existimos, mas não vivemos. Quantos de nós são assim!
Agimos, na verdade, como zumbis existenciais. Nas redes sociais, insistimos em
compartilhar violência e preconceito, persistimos na vaidade de nos
mantermos infelizes por dentro e bobamente felizes por fora. Cultivamos cada
vez mais a própria morte, sem nos darmos conta disso. Agimos como crianças
adormecidas, estranhamente crescidas, nuas, com as mãos tapando os olhos,
acreditando-se invisíveis, sem percebermos que estamos expondo nossas piores
expressões à luz de toda a sociedade. Estamos ausentes da própria vida, e isso
é justamente um dos maiores arrependimentos que experimentamos no fim da vida.
Essa falta na própria vida é algo difícil de
explicar. A conexão interna, a conexão com o outro, com a natureza, com o mundo à
nossa volta e com o que cada um de nós considera sagrado exige, antes de tudo,
um estado de presença. Não há espaço para falar sobre finitude com quem não
está vivo em sua própria vida, com quem já se enterrou em todas as sua
dimensões humanas e caminha sem rumo. Só falta morrer fisicamente.
O
ser humano é a única espécie na terra que é definida por um verbo: SER humano.
Nascemos animais, mamíferos pensantes e conscientes, mas só nos tornamos
humanos à medida que aprendemos a SER humanos. No entanto, a maior parte dos
animais da nossa espécie ainda não sabe o que é isso. E este é o verdadeiro
sentido da expressão “humanização”. A princípio, parece sem sentido “humanizar”
o humano. Mas percebemos claramente que a maior parte dos animais pensantes e
conscientes da nossa espécie se comporta de maneira instintiva e cruel, não se
aprofundando em seus pensamentos, sentimentos e atitudes. Falar em humanizar,
portanto, faz todo sentido. Estamos sendo, e a completude desse SER só se dá
quando sabemos qual é a finalização desse processo. Cada um de nós se organiza,
se descobre, se realiza para SER humano até o dia em que a morte chega, e é só
a consciência da morte que faz nos apressarmos para construir esse SER que
deveríamos ser.
No
entanto, não se trata de fazer alguma coisa. Isso é se distanciar do SER pelo
caminho do FAZER. Ter uma vida boa não se trata de ter coisas ou fazer coisas.
A ideia de SER humano é simplesmente existir e fazer diferença no lugar onde
estamos, justamente por sermos quem somos. Do contrário, quando chegarmos no
tempo de morrer, teremos que encarar o fato de que fomos apenas isso:
ausência.
Por
Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga
– CRP O7/13831
Atende
em Porto Alegre/RS
Adaptado de ARANTES, Ana Claudia Quintana. A morte é um dia que vale a pena viver. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2O16.
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