sexta-feira, 21 de setembro de 2018

A Morte nos ensina a Viver




Nossa cultura é faltante. Falta maturidade, integridade, realidade. O tempo acaba, mas a maioria de nós não percebe que, quando olha o relógio repetidas vezes esperando o fim do dia está, na verdade, torcendo para que o tempo passe e a morte se aproxime.

O que separa o nascimento da morte é o tempo. Vida é o que fazemos dentro desse tempo, é a nossa experiência. Quando passamos a vida esperando pelo fim do dia, pelo fim de semana, pelas férias, pelo fim do ano, pela aposentadoria, estamos torcendo para que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido. Dizemos que depois do trabalho vamos viver, mas esquecemos que a opção vida não é um botão on/off que desligamos conforme o clima ou o prazer de viver. Com ou sem prazer, estamos vivos 1OO% do tempo. O tempo corre em ritmo constante. Vida acontece todo o dia, e poucas vezes parecemos nos dar conta disso.

Enquanto desperdiçarmos tempo aceitando ilusões sobre o que é a vida, não podemos chegar à essência dela. Falta verdade sobre o nascer e o viver, e passamos a vida toda sob a falta de verdade sobre o que é morrer. Todo mundo morre, mas nem todo mundo um dia vai poder saber por que viveu.

O problema é que pensamos que somos eternos. Por causa dessa ilusão, vivemos nossas vidas de modo irresponsável, sem compromisso com o bom, o belo e o verdadeiro, distanciados da própria essência. Não gostamos de falar ou pensar sobre a morte. Somos como crianças brincando de esconde-esconde numa sala sem móveis. Tapamos os olhos com as mãos e achamos que ninguém nos vê. Acreditamos de forma ingênua que se não pensarmos na morte, é como se ela não existisse. E é justamente essa ingenuidade que praticamos o tempo todo com a nossa própria vida. Pensamos que, se não olharmos para o lixo de relação afetiva, o lixo de trabalho, o lixo de vida que preservamos a qualquer preço, será como se o lixo não existisse. Mas o lixo se faz presente. Cheira mal, traz desconforto e traz doenças.

Assim, vivemos como mortos-vivos: mortos para as relações de amizades, mortos para o encontro amoroso, mortos para a família e mortos para a relação com o sagrado em nossas vidas. Viver como mortos-vivos faz com que não consigamos viver de forma genuína. Existimos, mas não vivemos. Quantos de nós são assim!

Agimos, na verdade, como zumbis existenciais. Nas redes sociais, insistimos em compartilhar violência e preconceito, persistimos na vaidade de nos mantermos infelizes por dentro e bobamente felizes por fora. Cultivamos cada vez mais a própria morte, sem nos darmos conta disso. Agimos como crianças adormecidas, estranhamente crescidas, nuas, com as mãos tapando os olhos, acreditando-se invisíveis, sem percebermos que estamos expondo nossas piores expressões à luz de toda a sociedade. Estamos ausentes da própria vida, e isso é justamente um dos maiores arrependimentos que experimentamos no fim da vida.

Essa falta na própria vida é algo difícil de explicar. A conexão interna, a conexão com o outro, com a natureza, com o mundo à nossa volta e com o que cada um de nós considera sagrado exige, antes de tudo, um estado de presença. Não há espaço para falar sobre finitude com quem não está vivo em sua própria vida, com quem já se enterrou em todas as sua dimensões humanas e caminha sem rumo. Só falta morrer fisicamente.

O ser humano é a única espécie na terra que é definida por um verbo: SER humano. Nascemos animais, mamíferos pensantes e conscientes, mas só nos tornamos humanos à medida que aprendemos a SER humanos. No entanto, a maior parte dos animais da nossa espécie ainda não sabe o que é isso. E este é o verdadeiro sentido da expressão humanização. A princípio, parece sem sentido humanizar o humano. Mas percebemos claramente que a maior parte dos animais pensantes e conscientes da nossa espécie se comporta de maneira instintiva e cruel, não se aprofundando em seus pensamentos, sentimentos e atitudes. Falar em humanizar, portanto, faz todo sentido. Estamos sendo, e a completude desse SER só se dá quando sabemos qual é a finalização desse processo. Cada um de nós se organiza, se descobre, se realiza para SER humano até o dia em que a morte chega, e é só a consciência da morte que faz nos apressarmos para construir esse SER que deveríamos ser.

No entanto, não se trata de fazer alguma coisa. Isso é se distanciar do SER pelo caminho do FAZER. Ter uma vida boa não se trata de ter coisas ou fazer coisas. A ideia de SER humano é simplesmente existir e fazer diferença no lugar onde estamos, justamente por sermos quem somos. Do contrário, quando chegarmos no tempo de morrer, teremos que encarar o fato de que fomos apenas isso: ausência.



Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga – CRP O7/13831
Atende em Porto Alegre/RS

Adaptado de ARANTES, Ana Claudia Quintana. A morte é um dia que vale a pena viver. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2O16.

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