domingo, 28 de agosto de 2016

A Importância dos Sonhos




Sonhar é uma experiência humana universal, natural e necessária para o nosso desenvolvimento e equilíbrio psicológico. Todos nós gastamos em média seis anos da nossa vida sonhando. Enquanto a maioria de nós ignora e despreza o assunto dos sonhos, nos tempos antigos eles eram vistos como extremamente importantes, faziam parte da vida de homens e mulheres sábios e eram vistos como a manifestação mais óbvia da realidade do mundo espiritual.

Em função da ênfase no racionalismo e no materialismo, uma característica da modernidade, nós perdemos contato com as fontes da nossa vida espiritual. Nossa cultura se empobreceu e um abismo profundo surgiu entre a nossa vida consciente e a realidade de nossas almas. Apesar de todo bem estar material, estamos culturalmente e emocionalmente carentes. Nos sentimos perdidos e separados da nossa vida interior. E é claro que, a partir dessa perspectiva, os sonhos não fazem sentido algum.

No entanto, essa situação vem mudando. Desde o final do séc. XX, o interesse dos estudiosos e pesquisadores na realidade dos sonhos vem crescendo e vem sendo vista como uma possibilidade válida no estudo e investigação da alma humana. O psiquiatra suíço Carl G. Jung foi um pioneiro nesse sentido. Ele descobriu que os sonhos procuram regular e equilibrar as nossas energias físicas e mentais. Eles não apenas revelam a causa básica da nossa desarmonia interior e da angústia emocional, como também indicam o potencial de vida que há em nós, além de nos apresentarem soluções criativas para os nossos problemas diários. Jung descobriu que, enquanto dormem, através dos sonhos, as pessoas despertam para aquilo que realmente são.

Os sonhos, na verdade, são a manifestação mais direta do nosso inconsciente, ou do nosso mundo interior. Eles seriam como que a expressão dos pensamentos do nosso inconsciente. No entanto, esses pensamentos não se assemelham aos da consciência. Nossa consciência pensa através das palavras, da análise racional e lógica, de conceitos e idéias. Ao passo que o inconsciente pensa através de imagens, metáforas e símbolos, numa linguagem intimamente associada à da arte. A linguagem dos sonhos é a linguagem do “como se” ou de semelhança. O inconsciente utiliza-se de algo que nos é conhecido e familiar para representar algo que nos é desconhecido e não-familiar e, assim, nos colocar em contato com a realidade mais profunda de nossas almas.

A chave para a compreensão dos sonhos, portanto, é o conhecimento dos símbolos. Essa tarefa não é assim tão simples e requer estudo, dedicação e certa habilidade profissional. Além do mais, a maioria dos nossos sonhos não são tão óbvios. Eles costumam tocar o nosso ponto cego, aquilo que não conseguimos enxergar. Eles nunca nos dizem o que já sabemos, mas o que não sabemos. E é por essa razão que não se deve interpretar os próprios sonhos, pois nossa tendência é sempre projetar no sonho aquilo que já sabemos. Entretanto, algumas regras básicas e aspectos gerais podem ser transmitidos, no intuito de ajudar às pessoas a conhecerem e a estabelecerem uma comunicação com esse universo. Muitas vezes, em meio a sonhos completamente ininteligíveis, aparecem sonhos simples que qualquer um pode entender de imediato.

No próximo texto, vou abordar de forma mais específica os tipos de sonhos, seus elementos, algumas regras e aspectos gerais para interpretação. Mas, se você já quiser começar a se relacionar com os seus sonhos, a primeira coisa que deve fazer é passa-los para o papel. Isso funciona como um contrato com o inconsciente, além de ajudar a fixa-los na memória. O simples hábito de registrar os sonhos já traz uma sutil e significativa mudança à nossa consciência, ainda que não a entendamos. Depois, é importante nos tornarmos como que “amigo” dos sonhos. Olhar para a história do sonho, explora-la, rumina-la, refletir sobre ela, sobre os sentimentos, pensamentos e sensações que nos despertam, sobre as figuras presentes e, acima de tudo, tentar responder às seguintes perguntas: “Por que será que tive esse sonho?” e “Como esse sonho se relaciona com a minha situação de vida atual?”. Você também pode pinta-los, desenha-los e conta-los para outras pessoas de sua confiança. O importante é relacionar-se com eles e considera-los como uma parte comum e significativa da vida cotidiana.

Enfim, recordar e se relacionar com os próprios sonhos é como capturar peixes e possuir um pouco da vida do mar do inconsciente. É tempo de tentarmos nos reorientar, olhar um pouco mais para dentro de nós mesmos e descobrirmos as riquezas que estão aí escondidas. Como diz Cathy, a heroína do romance O Morro dos Ventos Uivantes, “Meus sonhos parece que ficaram sempre comigo e mudaram minhas idéias; misturam-se comigo como água e vinho e mudaram a cor do meu espírito.” É o que os sonhos fazem. Mudam a cor do nosso espírito. O colorido da nossa consciência se modifica gradual e sutilmente e acrescenta uma nova dimensão à nossa vida. 




Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS


Fontes: HALL, James A. Jung e a Interpretação dos Sonhos: manual de teoria e prática. São Paulo: Cultrix, 2007. SANFORD, John A. Os Sonhos e A Cura da Alma. São Paulo: Edições Paulinas, 1988. BOA, Fraser, VON FRANZ, Marie Louise. O Caminho dos Sonhos. São Paulo: Cultrix, 2007.






sábado, 20 de agosto de 2016

Prazer não garante Felicidade




Uma coisa é sentir prazer, outra é sentir felicidade. No entanto, nossa sociedade nos convence a todo instante que quanto mais prazer tivermos, mais felizes seremos. Mas, esses parâmetros são ilusórios, pois o prazer em si mesmo não gera a felicidade que buscamos.
O prazer é o produto direto dos estímulos que recebemos no âmbito das sensações e, portanto, é fugaz, depende das circunstâncias, de um lugar específico ou de um momento no tempo. É naturalmente instável, pois logo se torna neutro ou até desagradável. Se os estímulos forem repetidos muitas vezes podem até nos gerar repulsa. Quem consegue, por exemplo, comer sem parar ou escutar sempre a mesma música? Chega uma hora em que os nossos sentidos não aguentam e gritam por um “basta”.
O prazer termina com a rotina e nos leva ao tédio. Além disso, o prazer é uma experiência individual e pode facilmente transformar-se em egoísmo e entrar em conflito com o bem-estar das outras pessoas. Pode vir associado à crueldade, violência, orgulho, ganância e outras situações que não fazem jus ao que, de fato, é a verdadeira felicidade.
Já a felicidade não depende das circunstâncias. Ela está ligada a um sentimento de plenitude, de bem estar, que tende a perdurar e aumentar com a experiência. Não está ligada a uma ação ou atividade, mas a um estado de ser, ou a um equilíbrio emocional, que decorre da compreensão do funcionamento da mente e dos processos da vida. A felicidade é um estado de harmonia com a nossa natureza interior e, portanto, está intimamente ligada ao autoconhecimento. Ao contrário do prazer, uma das características principais da felicidade é o altruísmo, pois quem está em paz consigo mesmo naturalmente vai contribuir para promover a paz ao seu redor.
Isso não significa que não devemos buscar sensações agradáveis. Pelo contrário, sentir prazer faz parte da experiência de sermos humanos e de possuirmos um corpo. Estamos equipados para isso. A busca por prazer somente se torna um obstáculo quando nos impede de ver a verdadeira beleza e significado das coisas simples da vida, ou quando perturba o nosso equilíbrio emocional, nos levando à obsessão ou à aversão por tudo aquilo que possa impedi-lo. Todos nós queremos um estado de bem-estar constante. Mas, se não tivermos a clareza do que buscamos, podemos acabar buscando no lugar errado.
Para encerrar esse assunto, deixo aqui, na voz de Antonio Abujamra, o já conhecido texto da escritora e jornalista gaúcha Martha Medeiros, chamado “Felicidade Realista”. Ele ilustra essa diferença e nos chama atenção para um aspecto muito importante: que a felicidade, na verdade, é um sentimento muito simples e que não requer muito esforço. 




Por Melissa Samrsla Brendler
CRP 07/13831

(Para atendimento clínico na cidade de Porto Alegre, favor mandar email para meldeluz@hotmail.com ou entrar em contato através do messenger do facebook)



* Texto especialmente produzido para o Programa Psicodrops, que vai ao ar todas as terças e quintas-feiras, às 19 horas na Rádio Mutante.


* Baseado no livro de Matthieu Ricard: Felicidade, a prática do bem-estar. São Paulo: Palas Athena, 2012.

sábado, 13 de agosto de 2016

As Funções da Consciência



Sensação - Intuição - Sentimento - Pensamento


No que se refere aos tipos psicológicos, nós podemos dividir a psique humana de duas formas: um modo duplo, o qual define o modo como reagimos às circunstâncias externas, e um modo quádruplo, o qual define a forma como a nossa consciência percebe e assimila as experiências e eventos. A primeira divisão é representada pelos conceitos de introversão e extroversão, que já foram abordados em um texto anterior aqui no blog intitulado “Qual é o seu tipo?”. A segunda é representada pelas assim chamadas “funções da consciência”: pensamento, sentimento, percepção e intuição.

Nesse sentido, nós podemos perceber uma experiência, uma situação ou um objeto como algo que existe (sensação), como isto e distinto daquilo (pensamento), como agradável ou desagradável (sentimento) ou de onde veio e para onde ele vai (intuição). Nascemos com todas essas funções em potencial dentro de nós, mas vamos desenvolver apenas uma delas, mais do que todas as outras, conforme nossa disposição intrínseca. A função que a gente desenvolve melhor se tornará a nossa função principal. Essa função vai influenciar a forma como vemos, apreendemos, avaliamos e interpretamos a vida.




As pessoas que tem a função pensamento como principal são normalmente desprendidas, comunicativas, interessadas no mundo das idéias e privilegiam a racionalidade. Sentem a necessidade de relacionar as experiências da vida com um parâmetro de idéias pré concebido, que podem vir do exterior, extraído de livros, ensinamentos e conversas, ou podem vir de dentro, através do trabalho mental do próprio indivíduo. Fundamentalmente, o tipo pensativo estabelece a diferença, através da lógica, entre “isto” e “aquilo”, coleta e classifica a informação, pesando uma coisa contra a outra, e compondo um parâmetro filosófico a partir dos pedaços e fragmentos. Possuem a mente altamente desenvolvida, o senso de justiça e a capacidade de avaliação impessoal das situações, o amor pela cultura, a valorização da estrutura e do sistema, a corajosa adesão a princípios e o refinamento. Por outro lado, o mundo das trocas emocionais pessoais é o maior problema para este tipo. Muitas vezes eles são considerados frios, distantes, insensíveis e demonstram uma certa aversão a demonstrações emocionais. Em outras palavras, esse tipo tem um problema com o sentimento, porque ao contrário de tudo o mais que cai sob seu olhar, este não pode ser classificado, estruturado, analisado ou encaixado em parâmetros.

Por outro lado, para os que têm a função sentimento como principal nada é tão importante no mundo como os relacionamentos pessoais e os valores humanos. Sem eles o mundo é estéril, despido de esperança e alegria. Sacrificam qualquer coisa para preservar os seus relacionamentos. No sentimento, “isto” não é diferente “daquilo”, tudo é um e todas as diferenças se fundem. A única diferenciação que esse tipo faz é se um sentimento lhe parece apropriado ou não. São compassivos e empáticos, possuem uma grande capacidade de sentir o que o outro sente. Possuem sensibilidade ao ambiente, sutileza, encanto e compreensão, um forte senso de valores nos relacionamentos e a capacidade de juntar indivíduos e instintivamente entender as suas necessidades. No entanto, o tipo sentimento é um pouco infantil em relação ao mundo das idéias, da razão. Embora sejam sempre susceptíveis a dor dos outros, muitas vezes são incapazes de entender objetivamente que as pessoas pensam de forma diferente e tem deferentes necessidades e valores. Tentam colocar o seu manto de solicitude sobre tudo que perturbe o seu senso de harmonia e podem acabar não percebendo que algumas pessoas consideram isso sufocante. Por isso, o tipo sentimento muitas vezes se sente ferido e emocionalmente rejeitado nos seus relacionamentos. E, portanto, precisariam desenvolver mais o pensamento, a clareza e a objetividade.

O tipo sensação, por sua vez, prioriza os sentidos como forma de se orientar e foca sempre o aspecto concreto daquilo que é percebido. São práticos, eficientes, cheios de senso comum, realistas, organizados e amantes do dinheiro, da segurança e do status. Estão à vontade com o seu corpo, identificam-se com ele e, em geral, são saudáveis porque conseguem expressar seus desejos físicos. Lidam muito bem com as coisas ao seu redor, com o dinheiro e com as responsabilidades e possuem o dom de concretizar seus desejos. No entanto, quem tem a função sensação como principal tende a valorizar somente aquilo que pode perceber e, conseqüentemente, acaba perdendo muita coisa. Por valorizar excessivamente o lado prático da vida, deixam de perceber o significado maior e mais abrangente da existência, e se perdem em meio a uma rotina de trabalho e acumulação de objetos. Por serem um pouco escravos da realidade, não conseguem aproveitar o presente de forma criativa, solta e lúdica. O tipo sensação tem um problema com o lado mais sutil e intuitivo da vida. Por isso, a busca por alguma espécie de realidade espiritual é absolutamente necessária para este tipo, para suprir o vazio existencial e não danificar ao alicerces concretos sobre os quais construiu a sua vida.

E então chegamos à quarta e última função da consciência: a intuição. A intuição se refere a um tipo de percepção inconsciente sobre a realidade que surge espontaneamente na consciência, como um pressentimento. Ela fornece um conhecimento irracional sobre os fatos e as pessoas e, portanto, é oposta à função sensação, que se relaciona apenas com os dados concretos e imediatos das experiências.  O tipo intuitivo possui uma vitalidade e espontaneidade que muitas vezes é alvo de inveja dos outros tipos.  São sonhadores, brincalhões, artistas, exagerados, dramáticos e com gosto pelo colorido e pelas artes. Estão interessados no futuro e no seu interminável potencial, e seus palpites são tradicionalmente infalíveis. Por outro lado, não suportam ver a vida aprisionada na forma. Os intuitivos têm problemas em lidar com o mundo que está sempre cheio de objetos, pessoas, estruturas, leis, contas para pagar, necessidade de ganhar dinheiro, de se vestir, alimentar, etc. Simplesmente não conseguem ter um bom desempenho com as coisas práticas da vida. Ou seja, o tipo intuitivo tem um problema com o mundo dos sentidos e precisaria aprender simplesmente a se relacionar com o corpo pelo corpo.

Enfim, cada um desses quatro temperamentos vê e valoriza um diferente aspecto da realidade. Entender um pouco dessa tipologia básica, além de ser um meio divertido de rotular as pessoas do nosso convívio, é uma excelente maneira de aprendermos a mais difícil das lições: que nem todas as pessoas são iguais e que nós podemos aprender muito uns com os outros. Essa é a riqueza da vida, e ela só se torna acessível quando existe uma partilha de diferentes realidades e quando admitimos o mérito dos valores dos outros.

Na verdade, qualquer que seja a função da consciência com a qual nos identificamos precisamos aceitar a existência de todas elas dentro de nós, principalmente a existência da função inferior e menos desenvolvida. A vida não é estática, e a nossa psique trabalha sempre no sentido de encontrar o nosso equilíbrio. Nós crescemos em direção ao nosso oposto. Isso constitui, ao mesmo tempo, uma das maiores batalhas, uma das maiores alegrias de um dos aspectos mais significativos da experiência de viver.



Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS




sábado, 6 de agosto de 2016

O pai em nós





Assim como a mãe, a imagem do pai possui um poder extraordinário. Ela tem uma participação fundamental na nossa vida e na estruturação da nossa personalidade, pois seu papel está diretamente ligado ao desenvolvimento da consciência e da razão. A reflexão sobre essa imagem nos leva às energias criativas ou destrutivas; o pai é um princípio ativador, estimulante e inspirador da consciência e da própria vida.

A necessidade do pai é fundamental para todos nós, é uma necessidade arquetípica. Sendo assim, antes mesmo de existir a figura concreta e humana do pai, a idéia de pai já está presente no inconsciente coletivo da humanidade. Como acontece com os animais, existem nos humanos certos comportamentos instintivos que são pré-determinados e esperam o momento propício para se colocar em ação. Da mesma forma que os instintos comandam nossos comportamentos, existem fenômenos que governam nosso modo de pensar e sentir: os arquétipos. Os arquétipos são pré-disposições inatas para certas experiências que vão ser vivenciadas e humanizadas por meio das relações pessoais.

Como Jung diz, nós não nascemos uma tabula rasa, apenas nascemos inconscientes. Todos nós estamos pré-condicionados a encontrar um pai (e uma mãe) ao nosso redor. Trazemos em nós este arquétipo. E é por isso que essa imagem desempenha tamanho fascínio e importância sobre o nosso psiquismo quando somos crianças. Por trás do pai, existe o arquétipo do pai, e o nosso pai pessoal é apenas o mediador de uma imagem muito maior.

No nível pessoal, a transição do arquétipo da mãe para o arquétipo do pai é bastante significativa. Nos primeiros meses de vida, mãe e criança estão em perfeita simbiose, formam uma unidade psicológica, onde predomina na criança o estado inconsciente. Para a criança, não existe diferença entre o mundo exterior e mundo interior, o eu e o outro são sentidos como algo único e inseparável. A vida não é medida pelo tempo, mas regulada pelas suas necessidades instintivas. Mais tarde, quando começa a ficar de pé, passa a ver o mundo sob outra perspectiva, a vertical, e ao passar da horizontalidade para a verticalidade começa a operar o arquétipo do pai.

O pai é o primeiro ‘estranho’ que a gente encontra ao sair do estado de simbiose com nossa mãe. Pela sua simples presença, o pai impõe um elemento de diferenciação e dá início ao movimento de separação entre a mãe e a criança. O fim dessa fusão emocional marca o nascimento da consciência no filho e lança as bases para a construção de sua identidade. O pai vai ser o agente capacitador do processo de auto-afirmação da criança como sujeito e da sua capacidade de se de se defender e explorar o meio ambiente com segurança. Quando o sujeito não teve a oportunidade de ter essa experiência mediada por um pai pessoal, ou seu substituto, ele se sentirá extremante vulnerável e incapaz de lidar com as crescentes demandas da vida, e de aceitar os desafios do medo e da solidão. Permanecerá para sempre como um “filho eterno”, identificado com sua mãe, em fusão com o próprio inconsciente e, portanto, sem acesso à sua individualidade.

Esse processo se repetirá em novas bases quando, no futuro, o indivíduo precisar fazer a passagem do mundo da família para o mundo da sociedade. Nesse sentido, o arquétipo ou a imagem paterna também está associado com a questão da autoridade. Nenhum de nós pode se desenvolver por completo em nossa própria verdade sem encontrarmos uma autêntica autoridade interna. Por essa razão, o processo de desenvolvimento emocional nos obriga a buscar alguma forma de sobrepujar a autoridade externa, seja ela modelada pelos pais pessoais, pela cultura ou por alguma divindade.

Um sentimentalismo em relação à família e à tradição deixa passar despercebido o fato de que o nosso desenvolvimento psicológico exige certa revolução, certa transcendência perante à autoridade externa, para que se possa chegar à autoridade interna. Se formos olhar para a origem e evolução dos deuses na Mitologia Grega, veremos que há uma relação de hierarquia e conflito entre pais e filhos, que é ilustrada por três gerações de deuses encabeçadas por Urano, Cronos e Zeus, em que o filho sempre destrona o pai e toma o seu lugar. O mito nos mostra que essas revoltas contra a autoridade são a única maneira pela qual uma nova autoridade pode ser encontrada ou um novo tempo pode ser firmado, trazendo a renovação da antiga cultura e da tradição.

No entanto, é justamente nesses momentos que o arquétipo paterno mostra o seu lado sombrio. E como novamente nos mostra o mito, no qual Urano, Cronus e Zeus por medo de serem destronados, devoram os próprios filhos, a energia arquetípica criadora do pai também pode se transformar em uma força que impede toda e qualquer tentativa de auto-afirmação do filho, seja por sua ausência emocional ou física, ou por ser extremante autoritário e opressor, ou por nutrir, de fato, uma discreta inveja dos talentos do filho.

Assim, a imagem paterna possui, como todos os arquétipos, dois lados. O pai dá poder e/ou castra, autoriza e/ou tiraniza, protege e/ou destrói. Sempre que estivermos lidando com questões de autoridade pessoal, com nossa própria capacidade ou impotência, sempre que estivermos servindo à uma imagem divina ou questionando sua relevância para nossa vida real, estaremos lidando com o arquétipo do pai em nós. Sempre que procuramos a proteção ou a destruição do outro, que impusermos nossa autoridade sobre alguém, que transmitirmos uma mensagem de capacitação ou incapacitação, estaremos “paternando”, ou seja, exercendo o papel de pai, independente do nosso sexo ou da nossa intenção.

O pai é uma metáfora para uma energia muito poderosa e atuante que existe dentro de cada um de nós. O pai promove a nossa independência, a nossa capacidade de discriminação e compreensão do mundo e interrompe o que até então era natural para instaurar o deliberado, o escolhido, o consciente. No entanto, convém lembrar, o pai pessoal é apenas o mediador dessa energia poderosa e, como nós, é apenas o filho de outra pessoa, de outro pai. Ele é finito, frágil e tão cheio de medo quanto qualquer criança. E por ser assim, também é “merecedor de amor, indulgência, compreensão e perdão”, como o próprio Jung disse.



Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS