sábado, 6 de agosto de 2016

O pai em nós





Assim como a mãe, a imagem do pai possui um poder extraordinário. Ela tem uma participação fundamental na nossa vida e na estruturação da nossa personalidade, pois seu papel está diretamente ligado ao desenvolvimento da consciência e da razão. A reflexão sobre essa imagem nos leva às energias criativas ou destrutivas; o pai é um princípio ativador, estimulante e inspirador da consciência e da própria vida.

A necessidade do pai é fundamental para todos nós, é uma necessidade arquetípica. Sendo assim, antes mesmo de existir a figura concreta e humana do pai, a idéia de pai já está presente no inconsciente coletivo da humanidade. Como acontece com os animais, existem nos humanos certos comportamentos instintivos que são pré-determinados e esperam o momento propício para se colocar em ação. Da mesma forma que os instintos comandam nossos comportamentos, existem fenômenos que governam nosso modo de pensar e sentir: os arquétipos. Os arquétipos são pré-disposições inatas para certas experiências que vão ser vivenciadas e humanizadas por meio das relações pessoais.

Como Jung diz, nós não nascemos uma tabula rasa, apenas nascemos inconscientes. Todos nós estamos pré-condicionados a encontrar um pai (e uma mãe) ao nosso redor. Trazemos em nós este arquétipo. E é por isso que essa imagem desempenha tamanho fascínio e importância sobre o nosso psiquismo quando somos crianças. Por trás do pai, existe o arquétipo do pai, e o nosso pai pessoal é apenas o mediador de uma imagem muito maior.

No nível pessoal, a transição do arquétipo da mãe para o arquétipo do pai é bastante significativa. Nos primeiros meses de vida, mãe e criança estão em perfeita simbiose, formam uma unidade psicológica, onde predomina na criança o estado inconsciente. Para a criança, não existe diferença entre o mundo exterior e mundo interior, o eu e o outro são sentidos como algo único e inseparável. A vida não é medida pelo tempo, mas regulada pelas suas necessidades instintivas. Mais tarde, quando começa a ficar de pé, passa a ver o mundo sob outra perspectiva, a vertical, e ao passar da horizontalidade para a verticalidade começa a operar o arquétipo do pai.

O pai é o primeiro ‘estranho’ que a gente encontra ao sair do estado de simbiose com nossa mãe. Pela sua simples presença, o pai impõe um elemento de diferenciação e dá início ao movimento de separação entre a mãe e a criança. O fim dessa fusão emocional marca o nascimento da consciência no filho e lança as bases para a construção de sua identidade. O pai vai ser o agente capacitador do processo de auto-afirmação da criança como sujeito e da sua capacidade de se de se defender e explorar o meio ambiente com segurança. Quando o sujeito não teve a oportunidade de ter essa experiência mediada por um pai pessoal, ou seu substituto, ele se sentirá extremante vulnerável e incapaz de lidar com as crescentes demandas da vida, e de aceitar os desafios do medo e da solidão. Permanecerá para sempre como um “filho eterno”, identificado com sua mãe, em fusão com o próprio inconsciente e, portanto, sem acesso à sua individualidade.

Esse processo se repetirá em novas bases quando, no futuro, o indivíduo precisar fazer a passagem do mundo da família para o mundo da sociedade. Nesse sentido, o arquétipo ou a imagem paterna também está associado com a questão da autoridade. Nenhum de nós pode se desenvolver por completo em nossa própria verdade sem encontrarmos uma autêntica autoridade interna. Por essa razão, o processo de desenvolvimento emocional nos obriga a buscar alguma forma de sobrepujar a autoridade externa, seja ela modelada pelos pais pessoais, pela cultura ou por alguma divindade.

Um sentimentalismo em relação à família e à tradição deixa passar despercebido o fato de que o nosso desenvolvimento psicológico exige certa revolução, certa transcendência perante à autoridade externa, para que se possa chegar à autoridade interna. Se formos olhar para a origem e evolução dos deuses na Mitologia Grega, veremos que há uma relação de hierarquia e conflito entre pais e filhos, que é ilustrada por três gerações de deuses encabeçadas por Urano, Cronos e Zeus, em que o filho sempre destrona o pai e toma o seu lugar. O mito nos mostra que essas revoltas contra a autoridade são a única maneira pela qual uma nova autoridade pode ser encontrada ou um novo tempo pode ser firmado, trazendo a renovação da antiga cultura e da tradição.

No entanto, é justamente nesses momentos que o arquétipo paterno mostra o seu lado sombrio. E como novamente nos mostra o mito, no qual Urano, Cronus e Zeus por medo de serem destronados, devoram os próprios filhos, a energia arquetípica criadora do pai também pode se transformar em uma força que impede toda e qualquer tentativa de auto-afirmação do filho, seja por sua ausência emocional ou física, ou por ser extremante autoritário e opressor, ou por nutrir, de fato, uma discreta inveja dos talentos do filho.

Assim, a imagem paterna possui, como todos os arquétipos, dois lados. O pai dá poder e/ou castra, autoriza e/ou tiraniza, protege e/ou destrói. Sempre que estivermos lidando com questões de autoridade pessoal, com nossa própria capacidade ou impotência, sempre que estivermos servindo à uma imagem divina ou questionando sua relevância para nossa vida real, estaremos lidando com o arquétipo do pai em nós. Sempre que procuramos a proteção ou a destruição do outro, que impusermos nossa autoridade sobre alguém, que transmitirmos uma mensagem de capacitação ou incapacitação, estaremos “paternando”, ou seja, exercendo o papel de pai, independente do nosso sexo ou da nossa intenção.

O pai é uma metáfora para uma energia muito poderosa e atuante que existe dentro de cada um de nós. O pai promove a nossa independência, a nossa capacidade de discriminação e compreensão do mundo e interrompe o que até então era natural para instaurar o deliberado, o escolhido, o consciente. No entanto, convém lembrar, o pai pessoal é apenas o mediador dessa energia poderosa e, como nós, é apenas o filho de outra pessoa, de outro pai. Ele é finito, frágil e tão cheio de medo quanto qualquer criança. E por ser assim, também é “merecedor de amor, indulgência, compreensão e perdão”, como o próprio Jung disse.



Por Melissa Samrsla Brendler
Psicóloga - CRP 07/13831
Atende em Porto Alegre/RS





Nenhum comentário:

Postar um comentário